Bienal de SP tem 26% de artistas mortos e ensaia dança de inconformados

Evento provoca choque de gerações e expõe obras poéticas e ultrarrealistas que pensam o que poderia ser um mundo melhor

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Aquarelas do 'Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes da Bolívia', por Melchor María Mercado, 1841-1869

Aquarelas do 'Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes da Bolívia', por Melchor María Mercado, 1841-1869 Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia

São Paulo

Numa sala climatizada de paredes vermelhas, páginas de um livro estão dispostas dentro de uma vitrine que percorre todo o ambiente. No papel amarelado pelo tempo, estão desenhos vívidos de personagens fantásticos, como um homem com vários rostos, seres com corpo humano e cabeça de animal ou um homem elegante com cabelo de candelabro.

As antigas imagens são aquarelas de Melchor María Mercado, consideradas patrimônio nacional da Bolívia e que são expostas para o público pela primeira vez na história, na 35ª Bienal de São Paulo —fruto de uma longa negociação envolvendo o Itamaraty e que acabou por alterar a lei boliviana para empréstimo de obras de arte.

Em "Álbum de Paisagens, Tipos Humanos e Costumes", produzido no começo da República da Bolívia, Mercado tentou criar uma iconografia para seu país, tomando distância da etnografia eurocêntrica e do estilo neoclássico que predominavam na época. Ele tentou ao máximo capturar a diversidade cultural do país, com sua forte presença indígena, sem deixar de apontar a fragilidade e a corrupção do poder político que se instaurava.

Apesar dos mais de cem anos que as separam, sua obra se relaciona com a de Trinh T. Minh-ha, cineasta vietnamita que expõe "Corpos do Deserto", de 2005, e "Reassemblage", de 1982, filmado em 16 milímetros.

No curta, Minh-ha filma pessoas no Senegal em atividades cotidianas. "Ela também pensa na representação do outro com o outro, e não sem ele. Assim como Mercado, sua obra tem o elemento do humor e do grotesco", afirma Manuel Borja-Villel, um dos quatro curadores da mostra.

O contraste entre obras antigas e novas permeia todos os pavilhões, ora como um balé, ora como dança contemporânea na Bienal de São Paulo que tem como tema as "Coreografias do Impossível". É algo necessário numa mostra em que mais de um quarto de seu elenco, 26% dos autores, é composto por artistas mortos.

"Desviamos da ideia ocidental, do tempo como uma progressão. Aqui há a ideia do tempo em espiral, com rupturas, mas em que figuras do passado voltam ao presente constantemente", diz Borja-Villel.

Um pouco mais à frente no percurso estão os desenhos perturbadores de Ceija Stojka, austríaca deportada para um campo de concentração nazista quanto tinha só 11 anos. Sobrevivente do genocídio, a artista conseguiu pintar suas memórias apenas aos 50 anos de idade, se apropriando de uma atividade incomum para sua comunidade de forte tradição oral.

Os desenhos de cores fortes e borradas, com formas pouco definidas e quase infantilizadas, como se fossem representações de lembranças doloridas, aparecem também nas obras dos brasileiros Aurora Cursino dos Santos e Ubirajara Ferreira Braga, que ganham espaço no terceiro andar, lado a lado. Ambos passaram boa parte de suas vidas internados no hospital psiquiátrico do Juquery e colorem realidades difíceis com suas pinceladas.

Pelo peso de sua obra, pode causar estranhamento que, na parede em frente a Stojka, estejam os quadrinhos do americano George Harriman, que fez sucesso no início do século 20 com a série "Krazy Kat". O protagonista, um gato que até hoje não teve seu gênero revelado, é apaixonado —e não correspondido— pelo rato Ignatz.

Mas assim como Stojka, Harriman reprime uma história. Entre as interpretações possíveis, está a de que Krazy Kat representou dilemas pessoais da vida do autor que, como homem mestiço durante as leis segregacionistas nos Estados Unidos, vivia a dualidade de pertencer e não pertencer ao lugar que ocupava socialmente.

É um tema abordado também por Anne-Marie Schneider, mas de forma mais prática. Com traços simples, que poderiam ter saído de uma HQ, a francesa, hoje com 61 anos, desenha um corpo em diferentes espaços, geométricos e circulares. Pintados no mesmo tom de azul, a artista parece investigar as medidas espaciais e se aquele corpo cabe ou não no lugar a ele designado.

Do lado de Schneider, outro desenho de linhas repetidas que formam contornos geométricos disfarça cálculos milimétricos feitos com o computador. É uma partitura musical, codificada por Elena Asins, pioneira no uso da computação para criar tendências geométricas no mundo da arte na década de 1960. Só um músico conseguiria revelar a melodia impressa, mas qualquer um que olha sabe que há um padrão naquilo.

O tom de mistério atravessa diferentes obras nos pavilhões, fazendo jus ao tema deste ano. Talvez o ponto alto esteja no trabalho da americana Judith Scott, responsável por costurar uma série de esculturas em camadas de fios e tecidos. Em 1950, foi internada ainda criança em uma instituição por ter síndrome de down e ser deficiente auditiva.

Sem título, de Judith Scott, 1993
Escultura sem título, de Judith Scott, realizada em 1993 - Creative Growth Art Center

Scott viveu praticamente isolada do mundo até ser resgatada por sua irmã, em 1985. A artista morreu em 2005 e nunca falou de suas obras, tampouco deu nome a elas, o que levou estudiosos a precisar fazer raiografias para entender as camadas de costuras dos objetos volumosos de Scott.

A costura é ofício de muitos dos artistas que ocupam os pavilhões pensados por Oscar Niemeyer neste ano, como as brasileiras Sonia Gomes, com um corredor inteiro dedicado a acomodar suas obras, e Rosana Paulino, que estreia na Bienal de São Paulo depois de passar pela mostra principal da Bienal de Veneza no ano passado.

Em "Parede da Memória", sua primeira obra que completa 30 anos, Paulino costurou dezenas de almofadinhas inspiradas em um patuá, objeto de proteção usado na umbanda, que ficava na casa de seus pais. Em cada um deles, pôs a foto de um familiar coberta por uma microfibra transparente.

"Eu estava pensando na organização familiar para pessoas negras após a escravidão, que dividiu famílias", conta a artista. "A microfibra deixa a foto esfumaçada, como se estivesse desaparecendo. Parece quando começamos a esquecer o rosto de alguém por causa do tempo." As mesmas 11 fotos se repetem várias vezes, como um jogo.

Na Bienal de São Paulo, Paulino expõe suas obras ao lado de artistas consagrados como Emanoel Araújo, Rubem Valentim e Eustáquio Neves, assim como na exposição "Dos Brasis", que ocupa o Sesc Belenzinho até janeiro e reúne 240 artistas negros.

Mas, segundo ela, sua obra se relaciona só com a de Neves, pelo viés do registro fotográfico. "Cada artista carrega o ambiente em que viveu. A minha visão de mundo vinha de pensar uma jovem negra da periferia de São Paulo na arte, já Araújo e Valentim são baianos, com forte influência do terreiro, que eu não tenho."

Diante de "Parede da Memória", mapas imaginários enormes costurados por Arthur Bispo do Rosário constroem narrativas antagônicas à colonização e conversam com o desenho de seres fantásticos representados apenas por relevos em um enorme papel branco, da artista Ellen Gallagher.

"Muitas mulheres grávidas morreram no Atlântico durante as travessias do continente africano para a América. A partir daí se criou uma lenda de que elas teriam tido seus filhos no mar e, até hoje, personagens fantásticos habitam essas águas", conta Borja-Villel, o curador.

A artista de 57 anos tenta representar as lendas da "viagem impossível", com rostos que remetem a máscaras africanas. Ao seu lado, quadros do modernista cubano Wifredo Lam, admirado por Pablo Picasso, criam figuras ligadas à tradição afrodescendente cubana com pinceladas que lembram as vanguardas cubista e surrealista.

Em contraposição à poética de Ellen Gallagher, George Harriman e Judith Scott, outros artistas cravam o tom político da mostra. Um dos maiores exemplos, literalmente, é o enorme trilho de trem construído na entrada do edifício por Ibrahim Mahama, figurinha carimbada no circuito internacional. O trilho remete a um construído em Gana, país natal do artista, por colonizadores britânicos a fim de explorar minerais preciosos.

Outros exemplos são "A Fidai Film", do diretor palestino Kamal Aljafari, sobre a ocupação do Exército israelense de cidades palestinas, e "Tongues Untied", de Marlon Riggs, um retrato da vida de homens negros gays nos Estados Unidos da década de 1980.

Uma sala inteira abriga produções do Taller de Gráfica Popular, coletivo de artistas fundado no México em 1937 por Leopoldo Méndez. A continuação das paredes dá lugar a cartazes em prol da reforma popular no Peru com traços de pop art, criados no início da década de 1970 pelo designer Jesús Ruiz Durand, hoje com 83 anos.

No mesmo pavilhão, os indígenas yanomamis Aida, Edmar e Roseane exibem os curta-metragens "A Pesca com Timbó" e "Uma Mulher Pensando", que narram tradições ritualísticas do povo em seu território, atacado violentamente pelo garimpo ilegal nos últimos anos.

A obra dialoga com a intervenção de Kidlat Tahimik, de enormes esculturas feitas em pedra e madeira que tomam a forma de criaturas com corpos misturados de animais e humanos. Mais conhecido como cineasta independente, Tahimik aposta em cenografias que narram histórias indígenas como confronto a ocupações coloniais.

"Entender o espaço em que se está, essa é a coreografia", diz Manuel Borja-Villel. Afinal, a coreografia impossível poderia ser aquela que, ensaiada pelos que se foram e aprimorada pelas gerações seguintes, tenta ocupar, por meio da arte, espaços negados pela realidade cotidiana.

35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível

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