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Filmes Festival de Veneza

Festival de Veneza decreta o fracasso do amor romântico

Mostra italiana deu as cartas para o Oscar e exibiu filme sobre Priscilla Presley o novo de Woody Allen, sobre crises conjugais

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Veneza (Itália)

Foi uma mostra pouco estrelada. Se na última década o Festival de Veneza se consolidou como o tapete vermelho mais cheio de celebridades no circuito dos grandes festivais, no ano em que celebrou sua 80ª edição o evento sofreu os efeitos da greve dos atores e dos roteiristas de Hollywood.

Cena do filme 'Priscilla', de Sofia Coppola, exibido no Festival de Veneza
Cena do filme 'Priscilla', de Sofia Coppola, exibido no Festival de Veneza - Divulgação

Somente astros de filmes de produtoras e distribuidoras de pequeno porte puderam comparecer e divulgar suas obras. Mas ao menos eles continuam enchendo as telas e, como de hábito, a cidade italiana deu largada à corrida pelo Oscar.

Emma Stone, Bradley Cooper, Carey Mulligan, Adam Driver, Penélope Cruz, Jessica Chastain Peter Sarsgaard e Cailee Spaeny são alguns dos atores que saíram na frente e já contam com grandes chances de garantir uma vaga entre indicados à estatueta dourada.

A premiação foi em geral bastante justa. O júri presidido pelo diretor Damien Chazelle escolheu o longa que de fato era o melhor e mais inventivo da competição —"Pobres Criaturas", dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos.

O filme conta uma história meio maluca, sobre um médico que realiza uma cirurgia experimental, transplantando o cérebro de um bebê para o corpo de uma adulta. Como resultado, há uma mulher em constante aprendizado, mas sem freios nem papas na língua que afronta as convenções sociais.

O filme é uma alegoria sobre a opressão feminina, com a protagonista vivida —brilhantemente— por Stone. O filme amalgama entretenimento, arrojo estético e um tema atual em uma equilibrada dosagem.

O segundo troféu mais importante, o grande prêmio do júri, foi para "Evil Does Not Exist", de Ryusuke Hamaguchi, mostrando que o japonês caiu mesmo nas graças do Ocidente. O diretor, que também fez "Drive My Car", apresenta desta vez o embate entre os moradores de um vilarejo e um grupo empresarial que tenta inaugurar na região um empreendimento turístico.

O prêmio de melhor ator foi para o americano Peter Sarsgaard, por sua comovente performance como um homem que sofre de um tipo de demência precoce, no fabuloso "Memory", dirigido por Michel Franco. É uma atuação discreta, sem afetações, diferente daquele tipo de performance feita para ganhar prêmios, como a de vários outros nomes que eram tidos por favoritos na categoria.

Já o trofeu de melhor atriz configurou o maior equívoco do júri. Cailee Spaeny foi agraciada por dar vida a Priscilla Presley em "Priscilla", de Sofia Coppola. Embora ela tenha boas cenas, sobretudo no começo do filme, é um acinte que ela tenha levado a melhor diante de atuações superlativas como as de Carey Mulligan em "Maestro", Emma Stone em "Pobres Criaturas" e Malgorzata Hajewska-Krzysztofik em "Woman Of...".

O troféu de melhor direção para o italiano Matteo Garone, pelo belíssimo "Io Capitano", e o prêmio especial do júri para "Green Border", da polonesa Agnieszka Holland, deram o tom político da premiação. Os dois tratam do drama de refugiados que querem ir para a Europa, ainda que em chaves bem distintas.

O de Garrone é mais poético, mostrando dois amigos senegaleses e os percalços que encontram enquanto rumam de seu país para o Mediterrâneo. Já o de Holland é uma pedrada, não poupando em violência e dramaticidade ao mostrar migrantes que ficam presos na fronteira entre Belarus e a Polônia, sendo jogados de um lado para o outro, enquanto sonham em conseguir entrar de vez na União Europeia.

O prêmio de melhor roteiro também foi para um filme político: "O Conde", do chileno Pablo Larraín, uma sátira cômica e ácida que mostra o ditador Augusto Pinochet como um vampiro, ainda hoje vivo, saindo de seu esconderijo de vez em quando para fazer o que mais sabe —sugar o povo chileno.

Mas o tema que prevaleceu em Veneza não teve que ver com ativismo ou militância. Foi um assunto de natureza mais sentimental: a crise do amor romântico. A impossibilidade de uma relação amorosa feliz se concretizar está no cerne do formidável "Hors-Saison", de Stéphane Brizé, e também permeia todo o brilhante "The Beast", de Bertrand Bonello.

As telas venezianas exibiram também uma profusão de casamentos fracassados: pela perda do filho, em "Ferrari", de Michael Mann, pela homossexualidade de um dos cônjuges em "Maestro", de Bradley Cooper, e pela diferença de idade e o vício em barbitúricos em "Priscilla", de Sofia Coppola. Nos três, o preço maior, é claro, quem paga é a mulher.

Mais uma vez, o Lido contou com filmes que priorizam sobretudo protagonistas homens. Não é de hoje que o curador Alberto Barbera é tachado de machista. Veneza, aliás, exibiu filmes de três cineastas cancelados após acusações de abuso sexual —Woody Allen e Luc Besson, contra os quais nunca se comprovou nada, e Roman Polanski, este, sim, condenado nos Estados Unidos e foragido.

Melhor esquecer os filmes de Besson, "Dogman", em competição, e de Polanski, "The Palace", em exibição especial. São duas comédias de poucos predicados, se quisermos descrevê-las com alguma dose de benevolência.

Mas o novo de Allen, também fora de competição, ao menos mostra que o cineasta, pela primeira vez filmando em francês, recuperou o vigor que há anos não demonstrava, com seu "Coup de Chance" –que, não à toa, também fala de uma crise conjugal.

O amor fadado ao fracasso foi a tônica do festival, mas isso não quer dizer uma evasão da realidade. Talvez seja um reflexo do que é ser adulto em uma sociedade capitalista que exige alta performance o tempo inteiro. Não há romance que aguente.

Apesar de algumas posições conservadoras, o Festival de Veneza se torna octogenário com um olhar bastante atento para o mundo atual

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