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Como 'O Cangaceiro' inaugurou o 'nordestern' da série 'Cangaço Novo'

Gênero traz elementos do bangue-bangue americano ao cenário do Nordeste brasileiro e até hoje ecoa em obras como 'Bacurau'

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Marcelo Miranda

Se o western é o cinema americano por excelência, como o pesquisador francês Jean-Louis Rieupeyrout intitulou seu clássico ensaio de sete décadas atrás, o "nordestern" pode ser considerado um gênero brasileiro por excelência.

Cena da primeira temporada da série 'Cangaço Novo'
Cena da primeira temporada da série 'Cangaço Novo' - Divulgação/Prime Video

Tipicamente antropofágica, a utilização de elementos do bangue-bangue americano em histórias ambientadas no cangaço nordestino se configura a partir do "encontro de uma mitologia com um meio de expressão" –aqui recontextualizando o que escreve o crítico André Bazin no prefácio ao livro de Rieupeyrout.

O ideário do "nordestern" voltou à moda esse ano na série "Cangaço Novo", sucesso do Amazon Prime Video sobre um grupo de assaltantes de banco no interior do Ceará.

A partir da trajetória do protagonista Ubaldo, vivido por Allan Souza Lima, o espectador vê a ascensão de cangaceiros modernos numa narrativa que resgata vários dos elementos eternizados num subgênero cuja origem está num filme que, há sete décadas, inventou um universo audiovisual.

"O Cangaceiro" foi uma superprodução dirigida por Lima Barreto para os estúdios paulistas da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Lançado nos cinemas brasileiros no começo de 1953, o filme rodou o mundo ao ser exibido no Festival de Cannes e receber elogios de todo tipo, inclusive de Bazin, que apontou sua "poesia cruel extraída das fontes da história".

Saiu de Cannes premiado numa categoria nunca mais repetida no evento, a de melhor filme de aventura.

Foi a maior bilheteria na breve história da Vera Cruz, tendo levado quase 1 milhão de espectadores brasileiros às salas de cinema, o que não impediu a falência da empresa no ano seguinte –até porque os lucros de "O Cangaceiro" ficaram para a americana Columbia Pictures, que comprou a distribuição e o lançou em 80 países.

Cena de 'O Cangaceiro' (1953), de Lima Barreto
Cena de 'O Cangaceiro' (1953), de Lima Barreto - Reprodução

O legado maior do filme foi ilustrar nas telas o imaginário até então inédito em imagens e sons referente ao cangaço, às volantes, aos "macacos", como eram chamados os soldados oficiais, e à mítica construída em torno especialmente de Lampião e Maria Bonita nos anos 1930. Atribuem ao crítico potiguar Salvyano Cavalcanti de Paiva o neologismo "nordestern" para se referir justamente a "O Cangaceiro".

A adoração do paulista Lima Barreto à mítica sertaneja vinha de leituras do épico "Os Sertões", livro de 1902 de Euclides da Cunha. Indo trabalhar na Vera Cruz em 1950, Lima apresentou o projeto de "O Cangaceiro" ao fundador da empresa, o italiano Franco Zampari, mas não emplacou.

Caiu nas graças de um brasileiro, o gaúcho Caio Pinto Guimarães, vice-presidente do estúdio, e conseguiu levar adiante a história da rivalidade entre um líder de bando, Galdino, interpretado por Milton Ribeiro, e um dos integrantes do grupo, Teodoro, vivido por Alberto Ruschel. O estopim da briga é a professora Olívia, papel de Marisa Prado, sequestrada primeiro por um e depois pelo outro.

O confronto entre Galdino e Teodoro em "O Cangaceiro" serve de moldura ora melodramática, ora frenética, para Lima Barreto descrever a visão muito particular e nova do que seria o cotidiano daqueles bandoleiros do sertão que tanto fascinavam as pessoas, mesmo depois de sua extinção com a morte de Lampião em 1938.

O filme não escapa de chavões hoje facilmente identificáveis à visão sudestina de contextos e vivências nordestinas, a começar pelas locações. "O Cangaceiro" foi filmado no interior de São Paulo, em Vargem Grande do Sul, a 235 quilômetros da capital.

Os cenários rurais, que referenciam também as pradarias dos faroestes de John Ford, faz as vezes de um tempo "quando ainda havia cangaceiros", segundo letreiro introdutório. Também o carregado sotaque paulista de parte do elenco se mistura às falas e gírias dos diálogos, criados pela escritora cearense Rachel de Queiroz "sobre originais de Lima Barreto", conforme os créditos.

A narrativa límpida mostra a violência do cangaço, com ações de invasão a cidades, tiroteios e enfrentamentos a autoridades, e seu impacto na política, no comércio, na sociedade e mesmo em processos de industrialização.

Isso fez do filme um misto de entretenimento cheio de emoção e também o primeiro relato, ainda que questionável, de uma era relativamente distante, porém presente, na memória de muitos brasileiros à época.

"O Cangaceiro" abriu caminho para inúmeros outros "nordesterns", especialmente nos anos 1960 e 1970. Na prática, o subgênero nunca saiu de moda e sempre reaparece. Mais recentemente esteve em "Bacurau", de 2019, e se mostra ainda urgente e relevante no impacto causado por "Cangaço Novo" neste ano.

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