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Nariz de Bradley Cooper em 'Maestro' é polêmica velha em Hollywood

Se a beleza é a última fronteira que o politicamente correto vai enfrentar, renunciar a ela talvez seja grande ato de entrega

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São Paulo

Veja uma foto, qualquer foto, de Leonard Bernstein. Talvez você não saiba direito nem quem ele é, já que o músico, compositor e maestro americano morreu em 1990. Aliás, no edifício Dakota, o mesmo onde morava –e na porta onde foi assassinado dez anos antesJohn Lennon.

Maestro
Bradley Cooper em cena de 'Maestro', da Netflix - Divulgação

Bernstein era filho de judeus ucranianos que imigraram para os Estados Unidos no começo do século passado. Ele foi o primeiro músico americano, nascido e criado no século 20, a ser reconhecido mundialmente como um grande talento da música clássica –o que, na época, significava ser reconhecido na Europa, de onde tradicionalmente saíam os grandes compositores, instrumentistas e maestros eruditos.

Além disso, também arriscou a mão no mundo pop, fez concertos para jovens transmitidos pela televisão e compôs musicais para a Broadway, entre eles "West Side Story", ou "Amor, Sublime Amor", um clássico que já virou filme duas vezes, a última versão, de 2021, dirigida por Steven Spielberg.

Agora olhe uma foto de Bradley Cooper, o bonitão de Hollywood revelado na comédia (ótima, aliás) "Se Beber, Não Case", de 2009. O que tem no rosto de um que não está no rosto de outro? Não é pegadinha, a resposta é óbvia.

"Papai tinha um nariz enorme, lindo", disseram os três filhos de Bernstein, Jamie, Alexander e Nina, em uma declaração conjunta divulgada nesta quarta (16), em que apoiam o nariz fake e defendem as escolhas de Bradley Cooper, depois que o trailer do filme "Maestro", lançado na última terça, provocou reações inflamadas na internet.

Cooper é um americano filho de imigrantes italianos por parte de mãe e irlandeses por parte de pai, e não é judeu. Teve o apoio da família de Bernstein para fazer essa cinebiografia, que já é considerado possível indicado ao Oscar tanto para ele quanto para Carey Mulligan, que interpreta a mulher do músico e mãe dos seus três filhos, Felicia Montealegre. O longa passa por festivais de cinema no segundo semestre e estreia mundialmente na Netflix no dia 20 de dezembro.

"Jewface", gritou a internet, um termo que nem existia até agora, mas que remete à polêmica "blackface", a pintura da pele com tinta escura que costumava ser uma técnica usada para atores brancos interpretarem personagens negros, mas que, hoje, é considerada racista e inadmissível.

A "blackface", além de tirar oportunidades de trabalho que atores negros poderiam ter, também era usada para ridicularizar pessoas negras em espetáculos humorísticos feitos de brancos para brancos. Hoje em dia, escurecer a pele com maquiagem para se fazer passar por uma pessoa negra, seja em drama, em comédia, no Carnaval, no teatro infantil, em qualquer situação, é inaceitável.

Estamos todos aprendendo, constantemente, a lidar uns com os outros. E alterar comportamentos, mudar de opinião e tentar enxergar as coisas pelos olhos dos outros faz parte desse processo.

Mas a arena pública universal também se transformou no lugar mais raivoso e sugestionável deste século, incendiada pelas onipresentes redes sociais e pela patrulha constante de uma parte de seus usuários, sempre pronta para se sentir ofendida, e, assim, superior. E uma maneira quase garantida de causar confusão com a comunidade judaica é tocar neste ponto ultrassensível: o nariz.

A questão étnica, de um não judeu interpretar um judeu, é incompreensível. Não há uma definição precisa para o que é o ato de interpretar um personagem, mas se chegar a hora em que o mundo se vir obrigado a determinar os limites do que isso significa, é bem pouco provável que seja incluída uma cláusula em que um ator ou uma atriz de certa religião ou etnia seja para sempre obrigado a encontrar personagens que tenham a mesma crença, o mesmo conjunto de princípios ou ancestrais que tenham coabitado a mesma região do planeta.

Nariz falso, no entanto, é um problema com que Hollywood volta e meia tem que lidar. E o público, por consequência. Assim como perucas, sotaques ou "fat suits" —aquelas roupas que fazem o intérprete parecer bem mais gordo do que é na realidade—, esses truques são sempre a primeira impressão que o público tem do trabalho de um ator ou uma atriz.

E se quem está por trás da prótese de cera ou da roupa cheia de enchimento é um rosto –ou um corpo– conhecido, o estranhamento é natural. Aí a interpretação tem que realmente ser sublime para que aquele truque óbvio vá para o segundo plano, ou então tudo o que você vê é um nariz falso ou uma barriga de borracha numa pessoa conhecida.

Que nem na vida, né? Você já encontrou com alguém que tenha feito uma plástica radical, especialmente no nariz, e conseguiu agir naturalmente, como se nada tivesse acontecido? E, se conseguiu, não foi sobre isso que comentou no minuto seguinte que a pessoa saiu da sua frente?

Um dos narizes fake mais famosos de Hollywood foi o usado por Nicole Kidman em "As Horas", filme pelo qual ela ganhou seu único Oscar, em 2003, interpretando a escritora (nariguda, mas não judia) Virginia Woolf.

Nicole Kidman em "As Horas" - Clive Coote/Divulgação

Quando foi chamado ao palco para entregar o prêmio de melhor atriz principal naquela noite, o ator Denzel Washington abriu o envelope com o nome da vencedora e brincou: "e o Oscar vai para... Nicole Kidman, por um nariz". Em inglês, "por um nariz" significa algo como "por um triz". Claro que todo mundo entendeu do que Denzel estava falando ali.

Mas há mais nuances entre narizes falsos e premiações de cinema do que este exemplo revela. Atrizes lindas que disfarçam sua beleza, às vezes natural, às vezes conquistada a duras penas, por trás de truques que as deixem feias para um papel costumam ser vistas como magnânimas.

É como se o mundo não conseguisse acreditar que uma mulher a quem Deus deu a sorte de ser linda renunciasse àquela dádiva por um trabalho. Se a beleza física é a última fronteira que o politicamente correto vai ter que enfrentar um dia, renunciar a ela talvez seja o maior ato de entrega que alguém pode ter. Ou, pelo menos, parece que os votantes do Oscar pensam assim.

A deusa Charlize Theron também ganhou sua única estatueta por um filme no qual aparece praticamente desfigurada, "Monster – Desejo Assassino", de 2003.

Mas isso não é comum entre os atores. Robert De Niro, um homem lindo, ganhou seu segundo Oscar por um filme em que aparece balofo, mas engordou de verdade para interpretar a fase final e decadente do boxeador Jake LaMotta em "Touro Indomável", de 1980. Com nariz falso.

Tom Hanks ganhou seu primeiro Oscar em 1994 por "Filadélfia", em que interpretava um advogado gay demitido da firma em que trabalhava quando seus patrões descobrem que ele é uma pessoa vivendo com HIV. Hanks emagreceu horrores para encenar a fase final do seu personagem, quando a doença toma conta de seu corpo.

A ver se o nariz fake de Bradley Cooper, um homem lindo, talentoso e gói, vai acabar se tornando o verdadeiro protagonista de "Maestro" e criar uma cortina de fumaça obtusa na frente de uma história que precisa ser contada. A de Leonard Bernstein.

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