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Filmes LGBTQIA+

'Lobo e Cão' trata pessoas LGBTQIA+ com simpatia e sem bajulação

Filme de Cláudia Varejão simula ilha onde as pessoas encontram suas identidades e podem se realizar plenamente

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Lobo e Cão

  • Classificação 14 anos
  • Elenco Ana Cabral, Ruben Pimenta, Cristiana Branquinho
  • Direção Claudia Varejão

A palavra ínsula, informa-nos o filme logo na abertura, designou, no século 18, uma região oculta do córtex cerebral; essa região abrigaria o mistério das emoções. Logo a seguir, uma segunda informação: a ilha onde se passa o filme é uma metáfora da ínsula, que significa ilha em latim.

Simplificando um pouco as coisas, essa ilha de São Miguel, domínio português, é um lugar onde as pessoas encontram suas identidades e podem realizar-se plenamente. Simplificando um pouco mais: num momento em que os filmes com tanta frequência parecem querer agradar as comunidades LGBTQIA+, "Lobo e Cão" consegue tratá-las com simpatia, mas sem nenhum traço de bajulação.

Cena do filme 'Lobo e Cão', de Cláudia Varejão
Cena do filme 'Lobo e Cão', de Cláudia Varejão - Divulgação

Pode-se desde já reter a frase que irrompe em dado momento do filme: o binarismo é uma prisão. Por binarismo entendamos um mundo dividido em homens e mulheres, sem dar margens às inúmeras outras possibilidades, ou seja, pessoas que não se identificam com o sexo masculino nem com o feminino.

A ilha de São Miguel é um canto do mundo regido por antigas tradições lusitanas, entre elas o catolicismo. Ali vive Ana, simpática adolescente, que tem um irmão gay, Telmo. Sua amizade maior, no entanto, é com o jovem travesti Luís.

Bem à maneira do melhor cinema lusitano, a diretora Cláudia Varejão não avança com pressa, e nem em linha reta. Pode mostrar Ana no trabalho, carregando caixas ou no interior de um navio, pode deter-se numa festa ou mesmo em uma noite na praia onde Ana encontrará o amor (e, possivelmente, seu destino).

Nesse ambiente de tolerância pode de repente irromper a tensão: um pai durante uma procissão, por exemplo, tem um acesso de raiva e parte para cima do filho travesti. Sim, uma procissão. Regida, aliás, por um padre cabeludo e tão tolerante quanto a maior parte dos habitantes da ilha. É verdade que em dado momento, numa praia, aparecem uns sujeitos fortões conduzindo seus cães de ataque: é o que podemos chamar de intrusão infernal (o demônio não é chamado também de cão?) no paraíso queer.

É na variedade dos personagens que Varejão parece encontrar a força da sua ilha. Lá se encontram tradição e ruptura, os velhos e os jovens, os homens, as mulheres e todos os demais gêneros e variedades (gordos e magros, barbudos e sem pelos etc.) que compõem a população insular.

Varejão as coloca lado a lado, com cuidado, não empilhadas de modo a que o não acontecer por vezes nos pareça até um intenso acontecer. E assim decorrem as coisas desde o início, quando se insinua uma relação entre Ana e um homem que depois se revelará casado, até a tatuagem num dorso feminino (meu corpo, minhas regras), o andar gracioso do triciclo que Ana usa para trabalhar, ou a chegada do Canadá de sua colorida amiga Cléo. O filme corre suave e constante, bem dominado ritmicamente.

À medida que desenrola cena após cena, Varejão consegue aproximar o espectador binário (de preferência) de personagens em princípio estranhos. Nesse sentido é mais bem-sucedida do que o recente esforço de Eliane Caffè no recente "Para Onde Voam as Feiticeiras", em que um grupo de pessoas LGBTQIA+ confronta, quase todo o tempo, uma população entre hostil e indiferente no centro de São Paulo, e em que o desentendimento mútuo dá o tom.

Por fim, e para fazer justiça a Varejão, vale notar que seu filme não se confunde nem por um segundo com a estética lambida de Sabine Sciamma (de "Retrato de uma Jovem em Chamas"), que lhe outorgou um prêmio de melhor filme de autor no Festival de Veneza.

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