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Filmes

William Friedkin não era adorável, mas foi um grande diretor de cinema

Morto aos 87 anos, cineasta de 'O Exorcista' se tornou um dos grandes nomes de sua geração apesar do temperamento difícil

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São Paulo

Diga-se tudo de William Friedkin, menos que ele foi uma boa pessoa. O diretor, nascido em 1935, em Chicago, que acaba de morrer aos 87 anos sabia bem disso.

Todos a seu redor, aliás, sabiam disso. Filho de uma família pequeno-burguesa de Chicago, chegou a praticar assalto a mão armada na adolescência, e só a sua mãe, mais a bronca que levou dela, foram capazes de livrá-lo do que acreditava ser o seu destino: as drogas, o crime, a prisão.

O cineasta William Friedkin com o Leão de Ouro em mãos durante a premiação do 70º Festival de Veneza, na Itália - Tiziana Fabi/ AFP

Mas a família era pobre o bastante para não poder pagar-lhe uma faculdade. Em vez disso, o jovem Billy foi trabalhar num canal de TV local. Começou como office boy, algum tempo depois já estava filmando documentários realistas e atrevidos.

Sua coragem já impressionava: entrou com o cinegrafista num bairro negro de Chicago que os brancos normalmente evitavam. Saiu de lá com seu filme.

Quando resolveu ir para um lugar mais quente que Chicago, a Califórnia, logo ganhou fama de durão. Era o cara que falava o que lhe vinha à cabeça, não importa quem estivesse ouvindo. Mas não era isso o que atrapalhava sua carreira, e sim o fracasso dos primeiros filmes feitos em Hollywood, em especial "Os Rapazes da Banda", de 1970.

Admirador do cinema clássico francês, notou que naquela altura dos acontecimentos a fama de autor de filmes de arte não lhe caía bem.

Foi quando surgiu a chance de criar um espetáculo popular, na tradição americana, um filme policial: "Operação França". Friedkin usou como nunca sua habilidade de documentarista (quem se esquece da sequência em que um carro persegue um trem de metrô?), mas também soube ser moderno, soltando a câmera na mão de seu fotógrafo quando julgava necessário à ação.

Por fim, abandonou os mocinhos impolutos e fez de Gene Hackman uma mistura de mocinho e vilão, um herói "sujo", digamos assim. O filme rendeu uma pequena fortuna e deu a Friedkin o Oscar de melhor direção.

A boa fase não parou por aí. Pouco depois "O Exorcista", o livro, estourava entre os livros mais vendidos. William Peter Blatty, o autor, havia escrito o roteiro.

Só que todo mundo que consultou arrumava uma desculpa para não se meter com ele. Blatty pensou então em Friedkin. Mas Friedkin, após ler um roteiro dele de tempos atrás, disse que era algo como "a pior coisa que li em toda minha vida".

Blatty entendeu que Friedkin pelo menos tinha coragem. E filmar essa história era uma questão de coragem, com suas trucagens, camas que levitam, vômitos verdes etc. Friedkin reescreveu o roteiro de Blatty e usou sua habilidade de documentarista para fazer com rigor um filme de completa e sinistra fantasia.

Ellen Busrtyn, a atriz, foi puxada pela cintura e arremessada para trás, em dado momento, de tal modo que dali por diante nunca mais sua lombar se recuperou do trauma. Tudo porque Friedkin exigia o maior realismo possível da cena.

Nessa altura, o diretor já havia deixado para trás os sonhos de ser autor à europeia. Queria fazer muito sucesso e ganhar muito dinheiro. "O Exorcista", terceira maior bilheteria de todos os tempos até ali, realizava o seu objetivo.

Teria a fama subido à cabeça? Sua próxima aventura foi "O Comboio do Medo", de 1977, refilmagem de "O Salário do Medo", de Henri-Georges Clouzot, cineasta que ele admirava incondicionalmente.

Bem, algo os aproximava: Clouzot era famoso por ser grosseiro e violento em cena. Bem, ao longo da produção, Friedkin mostrou que podia ser bem pior. Consta que em dado momento despedia pessoas da equipe por nada. Nada mesmo. Bastava que não quisesse ver a cara daquela pessoa.

Foi uma produção custosa e dura, que passou por locações em quatro países, custou mais de US$ 22 milhões e fracassou de forma retumbante.

Isso bastaria para colocar um diretor hollywoodiano na geladeira. Com Friedkin foi pior. Para enfatizar o que julgava mera exploração pelas grandes corporações dos países da América Latina, não hesitou em colocar no filme, a horas tantas, uma fotografia da direção da Gulf and Western —não por acaso, a companhia que controlava a Paramount, não por acaso uma das produtoras do filme. E na foto, para completar, aparecia Charles Bluhdorn, chefão da Paramount.

O fracasso do filme, o temperamento, outros fracassos, e a carreira de Friedkin entrou num sombrio eclipse, e mesmo o êxito artístico de um filme como "Viver e Morrer em Los Angeles", de 1985, não o levava de volta à primeira linha dos cineastas estadunidenses.

Equilibrava-se entre filmes que não chegavam aos pés do que já fizera, embora não levassem ninguém a passar vergonha ("Jade", por exemplo) e eventuais maravilhas, como a brilhante refilmagem de "12 Homens e uma Sentença", de 1997, até chegar à última e ignorada obra-prima, o corajoso "Killer Joe: Matador de Aluguel", de 2011.

Foi seu penúltimo filme. Depois de "O Comboio do Medo" sofreu um ataque cardíaco violento, em que, diz ele, chegou a ser considerado morto durante 12 segundos, prometeu a si mesmo a mudar e se tornar "um bom homem".

Tempos depois, reconheceria que nunca conseguiu cumprir sua promessa. Foi sempre uma pessoa dura, exigente, que nunca deixava de dizer o que tinha a dizer, e raramente tinha boas coisas a dizer.

Morreu em Los Angeles, poucos dias antes de completar 88 anos. Talvez não tenha sido uma pessoa adorável, mas foi certamente um dos grandes nomes de sua geração, que irrompeu nos anos 1970 e mudou o cinema de Hollywood.

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