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Livros Prêmio Nobel

'É a Ales', do novo Nobel Jon Fosse, é hipnotizante como um livro em espiral

Romance recém-lançado no Brasil abala a noção de tempo e elabora o absurdo do luto

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Laura Erber

Escritora, editora e coordenadora do programa de pós-doutorado do Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden

É a Ales

  • Preço R$ 64,90 (112 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Jon Fosse
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Guilherme da Silva Braga

Um novo Ibsen, minimalista, beckettiano, espiritual, místico, transcendental —estes são apenas alguns dos epítetos que o autor norueguês Jon Fosse, novo Nobel de Literatura, vem acumulando nas últimas décadas.

Ele não os nega, mas tampouco se deixa capturar pelas armadilhas classificatórias de uma carreira literária de imenso sucesso. Fosse é hoje um dos dramaturgos vivos mais encenados do mundo. Seu prestígio nacional é tal que o governo norueguês concedeu a ele uma bolsa vitalícia e um escritório para trabalhar no edifício anexo ao Palácio Real, em Oslo.

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O escritor norueguês Jon Fosse, novo vencedor do Nobel - Reuters

A novela "É a Ales", que a Companhia das Letras acaba de publicar, felizmente em tradução direta do norueguês assinada por Guilherme da Silva Braga, marcou uma pausa na produção dramatúrgica que tornou Fosse internacionalmente célebre.

Em entrevistas, o autor diz que escreveu o livro para voltar a experimentar uma outra cadência, menos compacta e acelerada do que a exigida para os palcos. De fato, o livro se arma em frases longas, algumas vezes atravessando mais de uma página, entrecortados por diálogos sibilinos, repletos de silêncio.

Logo de início, há hesitação sobre a data presente em que a narrativa se desenrola. A protagonista Signe não sabe em que dia da semana está, "ela olha sem ver e tudo está como sempre esteve".

A história narrada lança o leitor no ambiente de uma casa velha, onde tudo parece estar como sempre esteve, embora tudo seja radicalmente diferente para Signe. A casa, entretanto, é aconchegante, lá uma mulher executa gestos simples enquanto convive com a presença imaginária de si mesma em outras épocas e do seu companheiro desaparecido no mar.

Da janela, ela observa o fiorde onde Asle, seu marido, desapareceu anos antes. A cada ano, cerca de 30 pessoas desaparecem no mar na Noruega.

Pode parecer insignificante, mas para um país não muito populoso, o número tem relevância e inspira diversas obras. O próprio Fosse já havia incursionado pelo tema na peça "Um Dia, no Verão", encenada no Brasil com direção de Monique Gardenberg, a partir da tradução do alemão de Lya Luft.

Para Signe, contemplar o fiorde da janela de casa é um modo de se manter conectada a um passado que não passa. Asle também era atraído pela paisagem, mas como uma promessa de evasão apenas sugerida, que resiste a uma interpretação definitiva.

Talvez navegar em seu pequeno barco em dias de mau tempo seria um modo de furar seu pequeno mundo e deixar a casa onde a família, por gerações e gerações, sempre viveu.

Esse enredo, simples em aparência, ecoa outras narrativas sobre a atração entre personagens masculinos e as águas, o mais óbvio sendo "O Velho e o Mar" de Ernest Hemingway, mas também "Uma Descida ao Maelström", de Edgar Allan Poe, e mesmo "A Terceira Margem do Rio", de Guimarães Rosa.

A prosa de Fosse produz uma espiral que hipnotiza, nela a memória vai sendo escandida como uma fábula, mas com a densidade imediata do cotidiano. Os mortos são ausências sempre presentes, coabitando os mesmos espaços, por vezes sufocantes, de onde não se pode nem sair nem entrar.

Há momentos em que prevalecem os pensamentos nos quais as imagens do passado não se distinguem do presente, que podem até ser mais nítidas e tangíveis do que este.

Em outras vezes, é o real imediato que parece hipnotizar e deter a atenção dos personagens —figuras formadas e dissolvidas nas chamas de uma lareira, ou o ato de carregar uma sacola e sentir os dedos congelarem merecem a mesma atenção, em Fosse, que as transfigurações emocionais em romances psicológicos.

A narrativa vai se construindo por meio de descrições ritmadas, capazes de abarcar as hesitações das personagens, seu apego a pequenas coisas —um gorro bege e um outro vermelho, por exemplo.

A referência ao mestre Ibsen se dá pela forma elíptica dos diálogos minimalistas, que oferecem pleno espaço para o envolvimento do público na compreensão do dito e do não dito e suas consequências.

"É a Ales" é uma experiência de leitura que envolve a respiração e abala noções básicas de tempo. O passado deixa de ser um tempo entesourado que precede o presente, torna-se uma camada de experiência geradora de visões que habitam a vida de Signe.

Fosse mostra que dentro de uma morte há sempre outras perdas, e que a literatura é uma forma de escuta privilegiada da fala dos mortos, podendo retroceder por várias décadas. O autor tece assim uma narrativa de espectros muito concretos, abrindo espaço para uma reflexão audaciosa sobre a permanência dos afetos e o lento, discreto e absurdo movimento do luto.

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