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Filme 'A Paixão Segundo G.H.' é como saborear a conquista do impossível

Luiz Fernando Carvalho e Maria Fernanda Cândido provocam o arrebatamento de Clarice Lispector usando a palavra falada

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A Paixão Segundo G.H.

  • Quando 1º.nov, às 21h20, no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca; estreia em circuito no primeiro semestre de 2024
  • Onde Mostra de Cinema de São Paulo
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Maria Fernanda Candido, Samira Nancassa
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Luiz Fernando Carvalho

Fazer uma versão audiovisual de "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, poderia bem ser um castigo destinado aos pecadores mais imundos no inferno de Dante.

Trata-se, afinal, de um dos romances mais introspectivos, menos imagéticos, da história da literatura brasileira —um mergulho sem paralelo no interior de uma mulher privilegiada, branca, rica, que descobre num espasmo, diante de uma barata morta, a pulsão de vida que é comum a ela e a tudo o que existe.

Cena do filme 'A Paixão Segundo G.H.', dirigido por Luiz Fernando Carvalho
Cena do filme 'A Paixão Segundo G.H.', dirigido por Luiz Fernando Carvalho, baseado no livro de Clarice Lispector - Divulgação

"Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo", como diz G.H. numa das infinitas frases memoráveis de um livro memorável pela infinitude. Como filmar uma coisa dessas?

O cineasta Luiz Fernando Carvalho se impôs essa tarefa hercúlea de bom grado —ou por algum senso de missão, de destino, sei lá. O fato é que deu certo, contra todas as chances.

Explicar como ele consegue realizar isso —considere que o produto final são mais de duas horas de, basicamente, monólogo— é outro desafio. É bom começar falando que este é o mesmo diretor que conseguiu tirar três das mais fulgurantes horas do cinema brasileiro de outro livrinho infilmável, "Lavoura Arcaica", no começo do século.

Dizer que Carvalho entendeu Clarice é reduzir esses artistas. Uma aproximação melhor é dizer que ele se assombra com as mesmas dúvidas dela, tem a mesma disposição de se inclinar na beira do abismo —se cair lá dentro, azar. Sorte nossa.

A conquista de Carvalho, com roteiro coescrito por Melina Dalboni, passa por uma fotografia que encontra deslumbre no belo e no feio com o mesmo interesse, até que essa divisão pare de fazer sentido; passa por uma montagem que nunca deixa de ser dinâmica, ainda que mal extrapole uma só personagem e cenário, e por uma trilha sonora que segura a curiosidade lá no alto.

E passa, acima de tudo, pela presença de uma Maria Fernanda Cândido em estado epifânico, uma mulher em constante oscilação entre a procura obstinada por algo e o pânico de encontrá-lo.

Nos seus melhores momentos, Cândido parece querer deixar de ser corpo e se dissolver em palavras —um movimento parelho ao projeto literário de Clarice, que gastava as palavras até encontrar ali algo que parecesse a vida.

Para lastrear uma obra sobretudo abstrata, a câmera de Carvalho precisa ancorar seu tempo na concretude das coisas. Facas raspando a parede, um móvel de madeira, um telefone antigo, os dedos da atriz. E, principalmente, seu rosto.

Nesse filme há muito de outra paixão, a de Joana d’Arc, como dirigida por Carl Theodor Dreyer há quase cem anos. Há também um tanto do fascínio de David Lynch pelo repulsivo e da maneira como Chantal Akerman entende o doméstico como um ambiente que conforma e repele.

Gosma de barata, aqui, derrete lenta como um jorro de libido. O vão do prédio onde a personagem joga as cinzas de seu cigarro provoca uma vertigem perigosa, atraente. O mar do Rio de Janeiro não evoca um horizonte a perseguir, mas a náusea de um lugar onde o pé não alcança o chão.

"A Paixão Segundo G.H." afunda os espectadores em imagens e palavras, um aturdimento alinhado ao da protagonista, sempre guiado pelo som de sua voz —evitando se estender, para seu bem, na discussão sociorracial anunciada pela presença de Janair, a mulher negra que se demite da casa antes do começo da história. Assim como G.H., a narrativa não dá conta da amplitude de sua perspectiva.

Se nas horas de impaciência a obra pode soar como a narração ilustrada de um audiolivro, se pode incomodar com suas voltas sem fim, ela agarra com ferocidade quem se atira no precipício de seu discurso.

Porque o mesmo arrebatamento que pode ser produzido pela palavra escrita, sugere o filme, pode ser obtido na palavra falada —expressa com o impulso desenfreado de quem não quer apenas descrever a coisa, mas chegar à coisa em si.

Há que se discutir se algum artista já conseguiu isso. Clarice chegou perto. Carvalho e Cândido também.

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