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Oswaldo de Camargo usa frio como metáfora do racismo em livro clássico

Novela reencena debates da intelectualidade negra da década de 1970, alguns ainda muito pouco flagrados pela literatura

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Bianca Gonçalves

Poeta, performer, tradutora e doutoranda em teoria e história literária na Unicamp

A Descoberta do Frio

  • Preço R$ 69,90 (136 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Oswaldo de Camargo
  • Editora Companhia das Letras

Num contexto global de afirmação da identidade e da herança africana —graças, especialmente, às lutas pela libertação das colônias europeias na África— o final da década de 1970 também foi uma época de extrema importância social e política para o protagonismo negro no Brasil.

Detalhe da ilustração de Kika Carvalho para capa de 'A Descoberta do Frio', de Oswaldo de Camargo
Detalhe da ilustração de Kika Carvalho para capa de 'A Descoberta do Frio', de Oswaldo de Camargo - Divulgação

Há 45 anos, em São Paulo, foi fundado o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, posteriormente nomeado Movimento Negro Unificado, o MNU, e surge a iniciativa literária coletiva dos "Cadernos Negros".

Com o intuito de promover um circuito de autoria e leitorado negro, os volumes dos "Cadernos", intercalando antologias de poesia e de contos, contribuíram para a cena literária brasileira apresentando escritores que têm ganhado seu merecido reconhecimento, como Cuti, Conceição Evaristo, Miriam Alves et cetera.

Também naquele ano de 1978 é lançada a novela "A Descoberta do Frio", de Oswaldo de Camargo, que agora ganha edição revisada pela Companhia das Letras, com ilustrações de Kika Carvalho.

A narrativa traz uma espécie de alegoria moderna, ambientada numa cidade grande em meio a acaloradas discussões políticas e estéticas. Como uma espécie de reencenação dos movimentos da renascença negra americana ou da negritude francófona, a intelligentsia do livro se ocupa, em mesas de bares, com a discussão em torno da "afro-brasilitude" ou "africanitude".

O autor lança mão de um elemento ainda pouco flagrado nas literaturas negras brasileiras, ainda que seja uma inquietação latente dentro da comunidade —os conflitos de classe entre negros ricos e pobres que, na novela, correspondem a visões estéticas antagônicas.

O frio é o elemento metafórico que se prolonga ao longo do enredo e que, aos poucos, revela ser um dos efeitos do racismo na subjetividade negra.

Desde tempos imemoriais, o frio teria se instalado em pessoas negras, produzindo sintomas não apenas físicos, mas principalmente psicológicos. Vitimando o jovem Josué, "o boy sem ter onde cair morto", a chaga não causa indignação ou preocupação no resto da cidade, restando a Zé Antunes, o personagem central, tentar sensibilizar os seus e encampar a resolução do mistério.

Com ares distópicos, "A Descoberta do Frio" apresenta alguma irmandade com outras obras escritas por autores negros consagrados, como "O Cometa", de W.E.B. Du Bois, na qual também se nota a luta contra um inimigo invisível que passa longe de ser uma entidade fantástica.

Muito mais próximo de uma concepção afropessimista do que afrofuturista —para usar, aqui, duas terminologias recentes e úteis à crítica literária—, o livro condensa uma série de elementos próprios do contexto histórico da obra, sobretudo no que diz respeito à formação do movimento negro no Brasil.

Oswaldo de Camargo apresenta um estilo ágil, conciso, próprio do que se exige de um bom novelista, afeito a construções poéticas que não romantizam o drama e as personagens da história nem um pouco; pelo contrário, as complexifica.

O livro traz ainda um prefácio do sociólogo Clóvis Moura, publicado em sua primeira edição, que dá aos leitores a relevância desta ficção —que sobrevive, hoje, com o potencial de se tornar um clássico de nossa literatura.

Oswaldo de Camargo
O escritor Oswaldo de Camargo aos 84 anos - Raphael Aguiar/Acervo pessoal
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