Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Ana Lívia', com Bete Coelho, confronta teatro e morte com texto inspirado em Joyce

Atriz se junta a Georgette Fadel para encenar primeiro texto de Caetano Galindo, tradutor do autor irlandês, como dramaturgo

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Bete Coelho e Georgette Fadel em 'Ana Lívia' Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

Nos últimos anos, Bete Coelho viu partirem, um a um, os grandes homens da sua vida. Perdeu Jô Soares, que ensinou o riso paulista à atriz dramática de Belo Horizonte, Zé Celso, encarnação de um teatro que quer que a vida supere a morte na arte, e Otavio Frias Filho, diretor de Redação deste jornal e diretor editorial do Grupo Folha até sua morte, há cinco anos, amigo que criou textos a que ela deu vida.

Perdeu ainda seu pai, que arranjou mala e colchonete para que a filha pudesse aceitar o convite de Antunes Filho para deixar Minas Gerais e vir a São Paulo atuar no Teatro Anchieta, o primeiro grande passo em direção à história dos palcos brasileiros. Perdeu Antunes há cinco anos e acaba de perder Danilo Santos de Miranda —o primeiro, um dos maiores diretores do país; o segundo, um dos que fizeram do teatro paulista a potência que é.

Bete Coelho em ensaio da peça 'Ana Lívia', no Sesc Consolação - Bruno Santos/Folhapress

Essa orfandade da atriz dá um sentido maior para seu retorno ao Teatro Anchieta com "Ana Lívia", teatro sobre teatro que fala em morte e começo. "Voltar é uma renovação do pacto com o teatro. É uma maneira de resistir, de esperançar", afirma a atriz.

"Ana Lívia", dirigida por Daniela Thomas com a assistência de Gabriel Fernandes e primeiro texto de Caetano Galindo, especialista em James Joyce, resiste a resumos. O próprio autor não acha fácil explicar a peça. "São duas vozes —que talvez sejam partes de uma pessoa, talvez sejam duas pessoas complementares—, o medo da morte e a crença no teatro como capacidade de superar a morte real", afirma.

Ana, interpretada por Bete Coelho, quer contar uma notícia terrível a Lívia, personagem de Georgette Fadel, emprestado para Iara Jamra em algumas apresentações. Mas Lívia não quer ouvir. Em vez disso, quer falar sobre uma peça que "ele" escreveu para ela.

Quem é ele? A plateia vai se se perguntar até o último segundo. Talvez o mar, que se insinua na peça inteira por meio de sons, gestos e palavras. O ruído do absurdo ganha ritmo de marulhar, o que pode ajudar a entender o apelido que a peça ganhou nos bastidores, "Beckett molhado".

"Essa não é uma peça linear. Ela até conta uma história, mas é uma história fragmentada", diz Coelho. "Foi grandioso da Daniela, uma cenógrafa já consagrada, nos presentear com o nada. Um cenário sem artifício, sem enfeite, com a luz e a coxia visíveis."

"E fazer essa peça aqui neste teatro, chamado de teatro de Antunes —agora do Antunes e do Danilo—, é um momento em que eu espero estar abrindo um novo ciclo."

Conhecida também por incursões no cinema, Daniela Thomas encontra algo diferente nos palcos. "O teatro é o palco da liberdade. A possibilidade de experimentar é muito maior. O cinema é tão monumental e existe tanto investimento que você fica mais restrito na experimentação. Aqui a gente experimenta tudo. Não imaginei nenhuma dessas cenas que estão aqui, eu só reagi."

Caetano Galindo se envolveu com Coelho e o resto da companhia BR 116 quando a atriz decidiu interpretar o monólogo de Molly Bloom em "Ulysses" através de sua tradução, publicada pela Companhia das Letras. Ela quis o tradutor presente na construção da peça e importou o acadêmico para o teatro e para São Paulo.

Ele estava na casa de Coelho em setembro do ano passado quando ela o convidou para escrever uma peça que partisse de "Finnegans Wake", de James Joyce —daí o nome, que vem de Anna Livia Plurabelle, mulher-rio do autor irlandês.

"O Caetano Galindo veio num momento de ocupar o espaço dessa amizade, dessa cumplicidade. O Gabriel também, ele é um dos homens da minha vida. Se não fosse o teatro, se não fossem essas pessoas para me ajudar a aguentar e entender a realidade, eu seria hoje uma pessoa drogada."

Contracenando com Coelho, Georgette Fadel quer que a peça seja sobre mais do que teatro. "São duas atrizes presas a esse palco, como nós estamos presas às nossas vidas, às nossas máscaras. Eu espero que este metateatro não seja uma autorreferência. Não é o teatro falando de si, é a vida falando de si através do teatro."

"Parece que elas estão mesmo num rio que sai e volta, que nem a gente nas relações. Tem hora que a gente está junto, depois não está mais, de repente vira tudo e de repente deságua", acrescenta Iara Jamra.

Galindo ainda não sabe se vai voltar a se arriscar na dramaturgia. Diz que vai depender da repercussão da peça. Para ele, o que entregou é o que ele pode entregar e, se não for suficiente, deve sair de cena. Como Ulysses, que se amarrou ao navio para ouvir as sereias, o dramaturgo mantém distância segura do teatro, em sua casa em Curitiba.

Mas, se der certo, ele deve voltar a tentar. Ao assistir pela primeira vez à encenação, se emocionou. Viu sua ficção ganhar carne e não pôde segurar as lágrimas. Mais água para um teatro molhado.

Ana Lívia

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