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Como a poeta Tove Ditlevsen antecipou autoficção ao falar sobre pobreza, amor e vícios

Reconhecida postumamente, autora dinamarquesa chega ao Brasil na esteira da apreciação de Annie Ernaux e Elena Ferrante

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Daniel Salgado
São Paulo

Poeta, romancista, contista e memorialista, Tove Ditlevsen é uma das pedras fundamentais da literatura dinamarquesa. Nasceu em 1917 e morreu em 1976, foi objeto de diversas homenagens em seu país, mas só agora, com o lançamento de "Trilogia de Copenhagen", os brasileiros vão ser apresentados ao trabalho que a consagrou postumamente pelo mundo.

mulher loira olha a câmera deitada em cadeira de praia, em foto em preto e branco
A escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen - TT News Agency/AFP

Publicada em três volumes entre o final dos anos 1960 e o começo dos 1970, a trilogia é composta pelos livros "Infância", "Juventude" e "Dependência" —no Brasil, o primeiro foi traduzido por Heloisa Jahn, morta no ano passado, e os demais por Kristin Lie Garrubo. Nas 392 páginas, Ditlevsen relata sua criação em um ambiente proletário e culmina em uma internação por vício em um opioide.

Até o final de sua vida, a dinamarquesa publicaria mais de 20 livros e centenas de colunas de conselhos em um jornal. "Ela não era só memorialista, mas também uma excelente ficcionista e poeta", diz o professor de literatura Karl Erik Schollhammer.

A trilogia é uma fração da produção literária de Ditlevsen, que só publicou um outro livro de autoficção. Por que, então, essa escolha para apresentar sua escrita ao público brasileiro?

Camila Berto, editora da Companhia das Letras responsável por trazer o livro que definiu como "clássico moderno", levanta alguns pontos. "É mais fácil apresentar um livro de forma mais longa, pois eles têm mais público e acessibilidade. E vivemos um momento de mais valorização de obras de memórias de autoras mulheres, depois de muitos anos em que o cânone foi extremamente masculino e branco."

A decisão foi bem-sucedida em mercados anglófonos, rendendo êxitos nos últimos anos e comparações com escritoras que vieram depois, como Annie Ernaux e Elena Ferrante, também celebradas por livros que exploram o contexto social e a subjetividade de mulheres da classe trabalhadora em ascensão por meio da escrita.

"Elas estão em um 'não lugar', sempre ligadas a sua origem mais pobre. É uma conexão de que não conseguem se desfazer. As três são capazes de explorar a subjetividade humana que é atravessada pela questão de gênero e classe", afirma Berto.

O sentimento de inadequação é levantado por Ditlevsen desde as primeiras páginas de "Infância". No volume, somos apresentados ao contraste das aspirações literárias da jovem com a realidade do bairro operário de Vesterbro.

"Todo mundo gosta do meu irmão, e muitas vezes penso que a infância dele combina mais com ele do que a minha comigo. Ele tem uma infância sob medida, que se expande harmonicamente com seu crescimento, enquanto a minha foi feita para uma menina inteiramente diferente, para a qual estaria adequada", escreve.

A partir daí, a escrita passa a ganhar mais e mais espaço na vida de Ditlevsen. Seu pai, Ditlev, é um leitor interessado e um sindicalista que alterna entre trabalhos mal pagos e o desemprego. Sua mãe, Alfrida, com quem desenvolve uma relação conturbada, mas também carinhosa, sonha com uma vida confortável para a filha. E seu irmão, Edvin, que teve a "infância sob medida", se torna pintor de carros por insistência familiar, o que o deixa com os pulmões adoecidos.

Ao longo do segundo volume, a autora transpõe as barreiras de sua criação e se torna uma escritora publicada. Dali em diante, sua atividade editorial seguiria firme até o final da vida.

Schollhammer destaca que Ditlevsen teve uma reapreciação crítica na Dinamarca após a sua morte. "Houve um interesse renovado reivindicando que ela era uma precursora na literatura dinamarquesa, que falava de questões antes pouco identificadas, como a vivência em asilos e hospitais psiquiátricos."

Esse é o tema central de "Dependência". A autora descreve seu casamento com Carl, médico responsável por seu vício em petidina, opioide que ele aplica nela pela primeira vez durante um aborto. A relação entre o matrimônio e esse episódio fica explícita no nome original da obra em dinamarquês. "Gift", o título original, significa "casada" e "veneno". A tradutora Kristin Lie Garrubo afirma que são episódios de sofrimento narrados em uma prosa "honesta, poderosa e incisiva".

Ao final da trilogia, Ditlevsen alcançou descrever, em detalhes, os desafios e estigmas da dependência química, a complexidade das relações amorosas e a crueldade da desigualdade.

Na mesma medida, mostra o papel transformador da leitura, o amor pelos filhos e o deslumbramento que vem com a libertação das amarras sociais. Como Schollhammer, o professor, destaca, são marcas da autenticidade da autora.

"Ela se confirma por ter uma voz muito autêntica, dentro de todas as contradições que carrega com muita honestidade. É uma pessoa que fala muito das dores, mas com uma certa distância de humor, uma vivência muito espontânea natural."

Trilogia de Copenhagen - Infância, Juventude e Dependência

  • Preço R$ 79,90 (392 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Tove Ditlevsen
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo
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