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'Compaixão' triunfa ao apresentar força única de Anne Sexton ao Brasil

Tradução da obra completa da poeta americana ao português faz, contudo, escolhas discutíveis

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Compaixão

  • Preço R$ 89,90 (376 págs.)
  • Autoria Anne Sexton
  • Editora Relicário
  • Tradução Bruna Beber

"Compaixão", antologia que contempla toda a trajetória poética de Anne Sexton, é a primeira edição brasileira de poemas da autora americana. Isso, por si, é motivo de celebração: sua obra, uma das mais prestigiadas entre as escritas em língua inglesa no século 20, tem uma força única, ainda hoje capaz de dialogar diretamente com os leitores.

mulher de cabelo preto fuma com os braços apoiados em mesa
A poeta americana Anne Sexton, autora de 'Compaixão', em fotografia de 1974 - Arthur Furst/Divulgação

Os quase 90 poemas foram recolhidos por sua filha mais velha, Linda Gray Sexton, nos oito livros que a poeta organizou em vida e em escritos póstumos —começando pela estreia em 1960, passando por "Live and Die", que lhe rendeu o prêmio Pulitzer em 1967, e terminando com poemas esparsos, escritos até poucos meses antes de sua morte, por suicídio, em 1974.

É uma "poesia confessional", como se costumam identificar autores americanos como Robert Lowell e Sylvia Plath que, de 1959 em diante, escreveram versos implicando a si mesmos de maneira aberta. Assim, é impossível ignorar referências autobiográficas como as internações psiquiátricas, as tendências suicidas, as relações familiares.

Discursivos, dirigidos quase sempre a um interlocutor e discretos no emprego de recursos sonoros, os poemas compõem uma longa reflexão sobre a subjetividade feminina.

Entre os memoráveis estão "Menstruação aos Quarenta", que revisita o sangramento como indício do desejo frustrado de ter um terceiro filho; "Duplicada", sobre a relação com a filha e os desejos que levaram à maternidade, à luz dos problemas psiquiátricos e da relação com a própria mãe; "Balada da Masturbadora Solitária", no qual a afirmação altiva e segura da satisfação do próprio desejo vai dando lugar à confissão de solidão.

São temas afinados com o que boa parte do público espera hoje da literatura. Parecem ser essas as leitoras que estão na mira da edição —a julgar sobretudo pelas opções da tradução, realizada pela poeta Bruna Beber.

Tome-se como exemplo um dos mais conhecidos poemas de Sexton, "Her Kind", em que o refrão arremata, em três estrofes, os passos da comparação entre o eu lírico e as bruxas: "I have been her kind".

Na versão em português, o poema leva o título de "Fulana", e o refrão, em vez de ressaltar a ambivalência despertada por figuras tão temidas quanto desejadas, as transforma em mulheres sem importância, parecendo se comprazer do próprio achado: "Já fui essas fulanas".

Ora, ainda que Sexton tenha sido uma dona de casa convencional na burguesia americana da década de 1950, a força de seus poemas os eleva acima dos dilemas individualistas do feminismo liberal contemporâneo —e também da dimensão biográfica.

Essa força reside, em boa parte, na sua capacidade de dar concretude a sentimentos complexos, ressaltando sua ambivalência por meio da associação linguística com temas avessos a essa intensidade: a vida doméstica, a rotina familiar, a crença religiosa, o ambiente hospitalar, a natureza domesticada.

capa de livro
Capa de 'Compaixão', primeira antologia da poeta Anne Sexton no Brasil, da Relicário - Divulgação

Em "Vontade de Morrer", a morte é comparada a "um osso magoado; injuriado" —espécie de metonímia, inscrita no corpo, da tentativa frustrada de suicídio. Na sequência, a figura é deslocada, ganhando existência própria, desvinculada das tendências subjetivas: "apesar disso, espera por mim, ano após ano,/ para sarar com delicadeza uma ferida antiga".

Essa composição ilumina alguns aspectos relacionados à tradução. Se às vezes há a preocupação em encontrar a correspondência exata nos dois idiomas ("lamelas de grama"/"blades of grass"), em algumas passagens o critério de escolha fica menos claro, gerando imprecisões desnecessárias no tom ("were gone" por um informal "deram no pé") e na relação entre termos ("even then" por "no entanto"), causando perda de expressividade poética.

Por exemplo, na seguinte passagem sobre suicidas: "Like carpenters they want to know which tools./ They never ask why build"/"Feito marceneiros, querem saber quais ferramentas/ Nunca questionam a mão de obra".

Traduzir é, certamente, fazer escolhas, um trabalho que se baseia na interpretação de texto e que será sempre discutível. Tudo é ainda mais delicado quando se trata de poemas, para os quais detalhes mínimos importam. É uma pena, nesse sentido, que a edição traga os poemas originais em bloco após as traduções, em vez de colocá-los lado a lado.

"Sobreviver é pouco", diz um dos versos. A vida de Anne Sexton parece estar apenas começando por aqui, e o pioneirismo de "Compaixão" será para sempre um trunfo.

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