Paul McCartney mostra no Rio que o tempo o tornou ainda mais significativo

Em show no Maracanã, ex-Beatle prova que a passagem dos anos aumentou o poder de sua presença no palco

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Rio de Janeiro

Em 1990, Paul McCartney abria seu primeiro show em solo brasileiro, no Maracanã, com "Figure of eight", canção do álbum "Flowers in the dirt", lançado no ano anterior. Na letra, ele cantava a sensação de estar se movendo sem sair do lugar, em círculos — ou num padrão da "figura de um 8" à qual o título faz alusão. "Não sei se estou indo ou vindo, adiantado ou atrasado", diz um dos versos.

Três décadas depois, de volta ao mesmo palco do Maracanã, com uma turnê que traz em seu repertório muitas das canções daquele primeiro show no Brasil, poderia se pensar que Paul retornava ao mesmo ponto — "dançando em círculos", como na letra de "Figure of eight". Porém, ao longo de 2h30, o ex-beatle nos lembra que nenhum homem — ou Quarrymen, numa alusão à banda que primeiro uniu os então adolescentes Paul, John e George — se banha duas vezes no mesmo Rio.

Show do cantor Paul McCartney, no estádio do Maracanã, na zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

"Can't buy me love" abriu a noite quente de Maracanã lotado, pontualmente às 21h. A voz ainda sustenta a canção, mas obviamente não guarda o mesmo vigor da interpretação de 1990. E menos ainda da gravação original, quando Paul tinha 20 e poucos anos.

Em vez de empalidecer o hit, porém, a garganta curtida pelo tempo — ao lado do inegável vigor remanescente — torna ainda mais significativa e comovente sua presença ali. A declaração de princípios juvenil e inocente, contrapondo dinheiro e amor, pulsa viva na voz de um senhor de 81 anos, pleno de dinheiro e de amor — como o Maracanã lotado testemunha.

A afirmação do sonho impossível da inocência eterna, da renovação incessante pelo mergulho nos mesmos rios das mesmas canções — os tais clássicos.

Na sequência, o artista emendou duas de sua banda Wings, "Junior's farm" e "Letting go", que afirmam, além da pressão ajustada da banda, sua ourivesaria de compositor pop para além dos Beatles. "Oi, Rio. Qualé cariocas?", disse, na primeira vez em que se dirigiu à plateia, em sua costumeira busca de expressões locais das cidades onde se apresenta. "Esta noite vou tentar falar um pouco de português. Um pouquinho", disse, em português, minutos depois.

Ao longo da noite, ele repetiria a expressão "o pai tá on", já dita nos palcos brasileiros nesta turnê, e puxaria um coro de "aha, uhu, o Maraca é nosso". Assim, sobre o palco armado no mesmo lugar do campo onde fica a trave na qual John Kennedy há pouco mais de um mês fez o gol do título da Libertadores da América para o Fluminense, Paul dava novas cores à expressão "Glória Eterna", usada para se referir ao torneio.

O repertório das apresentações da turnê — de oito shows em cinco cidades brasileiras, além de uma apresentação pocket no Clube do Choro, em Brasília — é a afirmação da tal glória.

Estão ali, além de clássicos dos Beatles como "Love me do" e "Let it be", músicas de diferentes momentos de sua carreira solo. Há até uma da fase proto-Beatles, ainda da época do Quarrymen. "Hora de voltar no tempo", disse, em português, antes de anunciar que tocaria a canção que havia sido a primeira da primeira fita demo dos Beatles: "In spite of all the danger".

O calor era visivelmente sentido pelo artista, que a certa altura tirou seu blazer preto e o sacudindo como um toureiro para a plateia. Mas a temperatura não pareceu abalar sua energia e sua demonstração de prazer real de estar ali, andando pelo palco e trocando de instrumentos — baixo, guitarra, violão, piano, bandolim e ukulele, este último numa versão quase folk para "Something", dedicada "ao meu brother George".

Paul também dedicou canções a John ("Here today"), com quem fez um dueto virtual em "I’ve got a feeling", e à sua companheira Nancy Shevell ("My valentine"), além de agradecer a Peter Jackson pelas imagens do telão em "Get back" — cenas do documentário "Get back", que mostra a intimidade dos Beatles durante a gravação do álbum "Let it be".

A banda toda se afinava com Paul na vibração, com especial destaque para o naipe de metais e o baterista Abe Laboriel Jr., um espetáculo à parte. Além da segurança e peso que imprimia no ritmo e da competência nos backing vocals, ele ainda exalava carisma expresso em caras e bocas ou mesmo em dancinhas de Tik Tok que fez em "Dance tonight", quando não tocou.

A plateia carioca, porém, não parecia tão animada quanto o ex-beatle e seus colegas de palco. Cumpriu as orientações de erguer cartazes com as palavras "na na" em "Hey Jude" e balões coloridos iluminados com as lanternas dos celulares em "Ob-la-di, Ob-la-da", promovendo dois momentos plasticamente grandiosos da noite, valorizados pelo gigantismo do Maracanã. E, ao longo do show, cantou junto e aplaudiu. Porém, sua reação pareceu aquém do que a noite representava — a volta de Paul ao estádio depois de tanto tempo, numa turnê que talvez seja sua última.

Havia, inclusive, rumores levantados entre os fãs de que Paul anunciaria sua aposentadoria. Sua performance estava longe de apontar para isso. Porém, ao fim do show — na sequência destruidora do bis, que inclui o peso de "Helter Skelter", a beleza de "Golden slumbers" e a graça de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" —, Paul fez o oposto do que se especulava.

Após encerrar o show com a infalível amarração de "The end" (cuja letra afirma que, no fim, o amor que você leva é equivalente ao amor que você produz), dizer que era "hora de vazar" e soltar um "fui", ele mandou um "até a próxima", deixando a porta aberta para a possibilidade de estender sua vida nos palcos por mais algum tempo.

"Got back" ("Voltei") é o nome da turnê. Não uma volta para o mesmo lugar, porém. Apesar de recorrer ao antigo repertório (canções recentes como "Come on to me" são exceções), Paul não dança numa "figure of eigth", sempre retomando o mesmo ponto.

Sua trajetória, dos Beatles até aqui e daqui para o infinito — um 8 subvertido, aliás — é em espiral, sempre se referindo ao centro e se ampliando. A cada volta dessa espiral, suas composições retomam sentidos esquecidos e abrem novos, ecoando eternamente como ecoa o "na na na" de uma canção triste da qual sempre se pode partir na direção do melhor. Better, better, better — mais alto a cada repetição.

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