Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

Quando Paul McCartney vai conhecer a música brasileira?

Em suas visitas ao país, cantor nunca demonstrou estar aberto para lidar de igual para igual com artistas brasileiros

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Estarei neste sábado entre os sortudos que assistirão ao show de Paul McCartney no Maracanã. Beatlemaníaco desde os 10 anos de idade, é com certo dó que constato o frequente desprezo de Paul para com a música brasileira.

Assim como eu, quase todos os artistas brasileiros impactados pela modernidade musical do século XX foram tocados pelos Beatles. Movimentos musicais importantes como a Jovem Guarda, a Tropicália, Clube da Esquina, a música brega, o rock dos anos 80, o pop dos anos 90 e a música sertaneja foram muitíssimo influenciados pelos meninos de Liverpool.

O cantor britânico Paul McCartney, realizado no Allianz Parque - Adriano Vizoni/Folhapress

De Roberto Carlos a Caetano Veloso, de Odair José a Milton Nascimento, de Zezé Di Camargo a Herbert Vianna, de Samuel Rosa a Chitãozinho e Xororó: todos tiveram sua vida mudada por Paul e seu grupo. No entanto, em suas visitas ao país, Paul nunca se mostrou aberto o suficiente para dialogar com estes artistas de igual para igual.

Imaginem se Sergio Dias, dos Mutantes, tocasse "Get back" com Paul? E se Milton cantasse "Golden Slumbers"? Tenho certeza que Caetano toparia cantar com o ex-beatle "Lady Madonna" ou "For no one" e Gilberto Gil poderia tocar guitarra em "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".

Roberto Carlos não se furtaria de cantar "And I love her". Zezé Di Camargo faria ótima versão de "Yesterday" e Herbert Vianna acompanharia "Michelle" em grande estilo.

É triste constatar que todos os quatro Beatles praticamente ignoraram a música brasileira. McCartney segue reproduzindo essa indiferença dos Beatles em relação ao Brasil. Numa entrevista à revista Playboy em fevereiro de 1965, John Lennon mostrou não saber se João Gilberto era mexicano ou brasileiro.

Em outubro de 1967 houve um encontro com a hoje esquecida banda brasileira The Jordans que durou meros vinte minutos. Há também uma vaga menção à bossa nova no encarte na edição deluxe do álbum "Let it be", sem nada de relevante. Os Beatles fizeram shows no Japão e na Indonésia, mas nunca vieram ao Brasil no auge da beatlemania. Distância não era desculpa.

Depois da separação, a alienação dos ex-Beatles em relação à música brasileira prosseguiu, embora tenha havido até encontros com algumas personalidades brasileiras. Lennon conheceu Pelé em 1977 numa escola de línguas novaiorquina.

Em 1979 George Harrison esteve no Brasil para assistir uma corrida de Fórmula 1. George era fã de Emerson Fittipaldi e, mais tarde, de Ayrton Senna. Em 1990 Paul compôs "How many people" em homenagem a Chico Mendes, canção presente no álbum "Flowers in the dirt". Futebol, Fórmula 1 e ecologia tocavam mais os Beatles do que a música brasileira.

No caso de McCartney, seu desprezo pela música brasileira é mais grave pelo fato de o ex-beatle já ter vindo ao nosso país várias vezes, inclusive tocando em praças que quase nunca são palcos de shows internacionais, como Fortaleza, Goiânia e Vitória.

Como mostra o jornalista Leandro Souto Maior, que organiza um livro sobre as vindas do ex-beatle ao Brasil, a primeira visita foi em 1990, quando Paul realizou o célebre show carioca para 184 mil pessoas. De lá pra cá somam-se 36 apresentações, contando as desta turnê de 2023.

O livro "Paul McCartney no Brasil", de Souto Maior, está em campanha de financiamento coletivo e será publicado com fotos, em edição bilíngue e em papel couché. Imperdível.

Em 1973 Paul quase veio ao Brasil para produzir o disco "Band on the run", mas acabou preferindo gravar em Lagos, na Nigéria. Em 1984 houve o convite para Paul participar da gravação de "Eu te amo", versão de Roberto Carlos para "And I love her".

Mas as negociações não foram para frente, como adiantou-me o autor Paulo Cesar de Araújo, que prepara o segundo volume da biografia de Roberto.

Paul sempre se mostrou simpático com os brasileiros. Tenta falar português, ostenta a bandeira brasileira no palco e possui bonitas lembranças dos shows no Maracanã e, especialmente, do show de Goiânia em 2013, quando uma invasão de grilos tomou conta do palco e o ecológico Paul se encantou. Grilos seduzem mais o ex-beatle do que nossa música.

Um fato sempre lembrado pelos beatlemaníacos é a visita de Paul ao camarim de Ivan Lins depois de uma apresentação do músico brasileiro na boate Blue Note em Nova York em 2001. No entanto, em entrevista a Pedro Bial há poucas semanas, Paul sequer se lembrou do nome de Ivan. Lamentável.

Em 2018 Paul lançou "Back in Brazil", uma das piores músicas de seu genial repertório. Uma canção anódina, que não comove nem o mais fanático beatlemaníaco brasileiro e parece condenada ao esquecimento. E, mais grave, a canção não tenta nenhum diálogo com a música brasileira.

Quando chegou a Brasília no início deste mês, Paul fez um show surpresa no Clube do Choro da capital nacional. Uma pena que as referências de Paul sobre a música brasileira sejam totalmente enviesadas.

Por que prestigiar uma organização como o Clube do Choro e ignorar a grande quantidade de artistas por ele influenciados? O Clube do Choro foi fundado por Jacob do Bandolim, um artista tão intransigente que considerava até Waldir Azevedo, o autor de "Brasileirinho", um artista "comercial", autor de uma arte "banal". Imaginem o que Jacob do Bandolim pensava do iê-iê-iê!

O gênio Milton Nascimento foi assistir o show de seu ídolo nos dias 3 e 4 deste mês na Arena MRV em Belo Horizonte. Milton conseguiu um encontro com Paul após um dos shows, algo que parece ter sido arranjado pelos produtores.

Sem dimensão da grandiosidade de Milton, Paul tratou-o como um fã normal e deu camisetas ao mineiro. Nas palavras de seu filho, Milton ficou parecendo "uma criança conhecendo o ídolo. Paul foi muito simpático, receptivo e brincalhão. Meu pai saiu muito feliz, com um sorriso no rosto", relatou o filho Augusto. E só. Milton merecia muito mais.

O mineiro foi sagaz e presenteou Paul com o disco "Milton", de 1970, que tem a música "Para Lennon e McCartney". Nesta bonita canção, Milton cantou versos que ecoam ainda hoje: "Por que você não verá/ Meu lado ocidental?/ Não precisa medo, não/ Não precisa da timidez/ Todo dia é dia de viver".

O músico Samuel Rosa, beatlemaníaco fanático, resumiu o que vem sendo dito aqui em texto que sairá no prefácio do livro de Leandro Souto Maior, "Paul McCartney no Brasil": "Confesso que gostaria de ter visto Paul interagir mais com a música brasileira, e penso que teria valido a pena fazer uma música com o Caetano Veloso, ou ao menos uma visita, como fez Mick Jagger.

Seria bonito vê-lo cantando uma música brasileira, como fez Bruce Springsteen, que interpretou 'Sociedade alternativa', do Raul Seixas, no Rock In Rio. Para mim, faltou isso, mas de resto não faltou nada. Ele é um artista completo, que inspirou o mundo e nos ensinou a fazer música", concluiu Samuel.

Se Caetano merecia ao menos uma visita, Roberto Carlos seria digno de ser condecorado por Paul como principal divulgador do rock e das músicas dos Beatles no Brasil.

Quem sabe, com o disco de Milton em mãos, Paul não se encantará com a voz, as harmonias e as lindas melodias do gênio mineiro? Pode ser o pontapé inicial para o beatle conhecer a música brasileira. Já passou da hora.

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