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Romance vencedor do Booker retrata massacre com humor niilista

'As Sete Luas de Maali Almeida', escrito no Sri Lanka, consegue ser thriller político, suspense kafkiano e fantasia saborosa

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Gabriel Rocha Gaspar

Jornalista, é mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle Paris 3

As Sete Luas de Maali Almeida

  • Preço R$ 89,90 (406 págs.)
  • Autoria Shehan Karunatilaka
  • Editora Record
  • Tradução Adriano Scandolara

Você é o protagonista. E você morre. Calma, não é spoiler. "As Sete Luas de Maali Almeida", de Shehan Karunatilaka, começa com o epitáfio do fotógrafo de guerra, o homem gay viciado em jogo que dá nome ao livro.

Shehan Karunatilaka
O escritor Shehan Karunatilaka após vencer o Booker de 2022 - Arif Ali/AFP

Vencedora do prêmio Booker do ano passado, a obra é, ao mesmo tempo, um thriller político ambientado na primeira das quase três décadas de guerra civil no Sri Lanka; uma história de detetive na qual investigador e vítima são a mesma pessoa; um vívido catálogo teológico da Ásia meridional; um suspense kafkiano, temperado com pornografia e doses saborosas de realismo fantástico. Tudo isso escrito em segunda pessoa, como as primeiras linhas deste texto.

É muita coisa para uma obra só. Mas, por incrível que pareça, o autor consegue conjugar todas essas referências de maneira fluida, graças a seu óbvio talento literário e a uma edição primorosa.

A edição, feita especialmente para publicação no Ocidente, é tão profunda que não dá para saber se este é o segundo ou terceiro romance do autor. O livro é uma versão revista de "Chats with the Dead", que pode ser traduzido como "conversas com os mortos", que não aspirava ultrapassar o mercado regional.

Mais curto, o texto atual retira altercações entre as facções conflitantes, mas acrescenta um mapa político, no qual cada grupo é moralmente qualificado com fases do tipo "disposto a assassinar a classe trabalhadora para libertá-la".

Essa cola, fundamental para um público leigo, é uma das muitas expressões do niilismo do defunto protagonista, que desperta subitamente numa repartição do além, cravada de formulários, almas desorientadas ainda agarradas a corpos destroçados e funcionários mal-humorados.

É como se o chefe (Deus?) tivesse saído para almoçar sem hora para voltar, em meio a uma guerra civil que congestiona o pós-vida. O overbooking celestial obriga cada finado a investigar a própria morte ou deixá-la para lá e "seguir a Luz".

O prazo para que o morto perscrute a Terra é de sete dias, contados em luas, como indica o título. Neste prazo, Maali passeia pela guerra desencarnado, assiste ao próprio esquartejamento, revisita antigos amigos e crushs e enfrenta dilemas éticos em conversas com vítimas de massacres tetricamente eternizadas por suas lentes, enquanto se depara com demônios e figuras folclóricas.

Nada no périplo é fortuito; por egocentrismo ou compromisso histórico, ele pauta suas andanças no objetivo de trazer à tona um conjunto de fotos escondidas debaixo de sua cama, cuja publicação, diz ele, mudará a história do mundo.

Para o autor, que passou os primeiros anos da guerra na bolha pequeno-burguesa da capital Colombo, a brutalidade tomou dimensão conforme a escrita evoluía. E parte do vácuo se deve à ausência de imagens.

Apesar de, segundo a ONU, mais de 100 mil pessoas terem morrido, ele só se lembra de três fotos dos corpos. Estaria o restante escondido debaixo da cama de um jornalista esquartejado? O que essa exumação causaria à traumatizada memória coletiva?

Essas são as indagações que Shehan Karunatilaka faz a você, testemunha póstuma, desencarnada em Maali Almeida. E para te permitir sondar respostas, oferece um rico repertório político, cultural e simbólico do sul asiático.

É uma tragédia, mas construída com um humor sombrio que expõe os dilemas morais de uma guerra fratricida sem ter de recorrer aos sermões ou ao pieguismo. A abordagem é eficaz, mas não sem custo: como Maali é "você", é possível que você se canse dele. Do niilismo, do consumismo sexual, da crônica falta de lealdade.

Justificada a todo momento pelo formato de autorretrato alheio, a imoralidade de Maali é por vezes mais intragável que a da própria guerra, onde o autor tem maior margem de manobra literária.

Ainda que seja uma versão ocidentalizada do romance original, "As Sete Luas de Maali Almeida" consegue construir uma multiplicidade de olhares sobre uma crise humanitária praticamente ignorada pelo Ocidente. E o faz de maneira divertida, o que não é de se desprezar.

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