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Livro inédito demonstra como o racismo afetou a obra de Carolina de Jesus

Romance 'O Escravo' é sintoma do que ocorre quando se nega tudo a uma autora com abundante talento literário

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Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

O Escravo

  • Quando Lançamento em 11/12
  • Preço R$ 64,90 (208 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Carolina Maria de Jesus
  • Editora Companhia das Letras

Como parte de um projeto de publicar a obra completa da escritora Carolina Maria de Jesus com o mínimo de interferência editorial, a Companhia das Letras lança agora seu romance "O Escravo", inédito, escrito por volta da década de 1960 e transcrito de cadernos disponíveis no Museu Histórico Nacional de Sacramento, em Minas Gerais, cidade natal da autora.

A publicação das obras está a cargo de um conselho formado por quatro acadêmicas que estudam de sua obra, coordenado pela escritora Conceição Evaristo e por uma das filhas de Carolina.

Carolina Maria de Jesus é registrada escrevendo sobre uma mesa de madeira. Ela é uma mulher negra que ocupa o canto da imagem. Está sentada, aparentemente absorta no que escreve.
A escritora Carolina Maria de Jesus fotografada por Norberto Neves, em imagem do Arquivo Público do Estado de São Paulo - Folhapress

Não existem "escravos" em "O Escravo": todas as personagens são escravizadas metaforicamente por dinâmicas de classe, dinheiro e poder que atravessam as relações entre duas famílias paulistanas abastadas. Carolina, a partir de sua posição subalternizada, é uma observadora arguta e implacável dos pequenos dilemas e tragédias engendradas pela desigualdade.

Também não existem pessoas negras no livro —Carolina, ao não descrever ninguém racialmente, permite a presunção que sejam brancas, como explorado pela crítica Fernanda Silva e Sousa no posfácio. Essa lacuna ressalta a branquitude como modo padrão da sociedade: o negro é descrito, o branco, presumido.

Infelizmente, porém, "O Escravo" padece com personagens pouco diferenciados, linguagem desnecessariamente difícil e uma narrativa com parca estrutura. Em grande parte por ser uma mulher preta favelada, Carolina não teve acesso a um bom editor que levasse seu texto a sério e trabalhasse nele para ajudar a dizer melhor o que estava tentando comunicar.

Seu primeiro editor, o jornalista Audálio Dantas, em depoimento ao livro "Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus", afirmou seu explícito desinteresse por quaisquer outros textos da autora que não seu diário. Não é uma falha de Carolina enquanto escritora. Qualquer autor, inclusive os grandes como ela, se beneficiam do trabalho de um bom editor.

"On the Road", de Jack Kerouac, foi severamente editado pela Viking Press e publicado quase à revelia do autor, que não autorizou as últimas provas. Kerouac se ressentiu tanto da interferência editorial que, para os próximos livros, já cacifado como best-seller, impediu que mexessem na sua prosa. Para saber o valor de um bom editor, basta comparar "On the Road" com os livros posteriores de Kerouac —que, sim, são bons, mas falta... alguma coisa. Falta editor.

Infelizmente, o maior valor de "O Escravo" ainda é como documento histórico da desigualdade social e racial do Brasil. Eis aqui o que acontece quando a uma grande autora é negado tudo —educação, apoio, divulgação, acesso, respeito— menos a prática e o gozo do seu próprio abundante talento literário.

É um texto, aliás, que lemos com assombro e pena: assombro por tudo que Carolina realizou, contra tudo e contra todos; e pena, nunca dela, que era indomável e não teria aceitado, mas por todas as grandes obras literárias que nunca chegaram a existir porque suas autoras estavam moendo cana ou varrendo chão.

Sabemos pelo depoimento de seus filhos que o grande objetivo de Carolina era ser autora de ficção. "Os editores da Francisco Alves não queriam publicar seus romances. Ela gostava de escrever RO-MAN-CE, mas o pessoal da direção queria continuar com as fofoquinhas de 'diário'", conforme o relato de "Cinderela Negra".

Então, por um lado, ler este romance desencavado é um ato subversivo e carinhoso: subversivo contra a sociedade que só considerou Carolina digna de ser diarista, e carinhoso com ela, ao dar uma chance aos textos que ela mesma considerava seus mais importantes.

Por outro lado, porém, a literatura é ingrata: autores raramente ficam famosos pelas obras que querem. Joan Didion e Susan Sontag, Paulo Francis e Carl Sagan, Harold Bloom e Gilberto Freyre, todos escreveram romances pelos quais gostariam de ser lembrados, mas que público e crítica consideraram muito inferiores à suas obras não ficcionais.

Carolina, quando escreve seus diários, tem uma urgência primordial, uma raiva indomável que turbina sua prosa e faz com que produza pensamentos e frases inesquecíveis. "Quarto de Despejo" é uma porrada atrás da outra.

Já "O Escravo" é frio: tudo aquilo que dá vida e potência a "Quarto de Despejo" está ausente. Parece um exercício de escrita criativa no qual uma autora muito talentosa está explorando a ficção pela primeira vez, testando o terreno, descobrindo até onde pode ir, usando palavras difíceis para experimentar o efeito.

Não é que Carolina só podia falar, ou só deveria ter falado, de suas experiências pessoais como mulher negra favelada. Mas, comparando o "Quarto de Despejo" que foi best-seller mundial com a narrativa desconjuntada de "O Escravo", não é um desserviço a ela reconhecer que, quando escrevia sobre o assunto que sentia como urgente e revoltante, era uma autora mais vigorosa do que quando timidamente ensaiava seus primeiros passos no romance.

Também não se critica aqui a iniciativa de publicar "O Escravo" —estamos há séculos fazendo pior com homens brancos mortos. O próprio Kerouac teve publicado há pouco o manuscrito original de "On the Road", que padece de muitos dos males de "O Escravo".

Carolina Maria de Jesus, mulher preta, já é uma grande autora canônica brasileira. A prova é que textos inéditos de qualidade inferior estão sendo desencavados do fundo de seu baú, publicados por nossa maior editora e resenhados por nosso maior jornal. Essa é praticamente a definição de autor canônico. Representatividade importa.

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