Descrição de chapéu
Filmes

Comparado a 'Corra!', obra digitalizada lembra cinema negro do Brasil

'Um É Pouco, Dois É Bom', de Odilon Lopez, ajuda a aprofundar estudos sobre a historiografia do cinema brasileiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Gabriel Araújo
Gabriel Araújo

Jornalista formado pela UFMG, atua nas editorias de Interação e Redes Sociais

Lorenna Rocha

Historiadora, crítica e cofundadora da plataforma Indeterminações

Recife e Belo Horizonte

Em 1970, o cineasta negro Odilon Lopez, mineiro radicado no Rio Grande do Sul e morto em 2002 aos 61 anos, lançou o longa-metragem "Um é Pouco, Dois é Bom", um dos primeiros filmes com imagens urbanas da cidade de Porto Alegre.

O feito, raro para a época, o coloca ao lado de realizadores como Adélia Sampaio, Antonio Pitanga, Haroldo Costa e Zózimo Bulbul, cujas filmografias vêm sendo redescobertas, especialmente durante a última década, pelas gerações mais novas. Assim como Cajado Filho, que já nos anos 1940 reinventava a chanchada brasileira.

a imagem em destaque mostra um homem negro retinto abraçado a uma mulher branca e loira dentro de um carro
Um dos cartazetes de divulgação do filme "Um é Pouco, Dois é Bom" - Acervo familiar

Entretanto, o primeiro longa de Odilon segue pouco conhecido e estudado —assim como o restante de sua obra, que inclui ainda curtas-metragens e breves atuações em chanchadas nos anos 1950 e 1960. A única cópia disponível para circulação estava depositada na Cinemateca Capitólio, instituição de Porto Alegre dedicada à preservação e difusão do audiovisual brasileiro.

E, num país que ainda acumula inúmeros desafios relacionados à preservação audiovisual, todos conhecem os riscos vinculados à ampla exibição de um material em película.

No ano passado, a digitalização do material foi possível por uma parceria entre a cinemateca, a Indeterminações, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, e a Mnemosine Serviços Audiovisuais, empresa especializada em serviços de preservação e restauração, com recursos do governo de Porto Alegre e do Itaú Cultural. O lançamento do material está previsto para o primeiro semestre deste ano.

O filme havia passado por uma digitalização parcial em 2006, que recuperou apenas um dos dois episódios que compunham o filme —a decisão peculiar fez com que o longa de Odilon passasse a ser erroneamente lembrado como um média-metragem.

a imagem mostra um homem negro retinto apontando a lente de uma super-8 para um espelho, de modo que a câmera cobre parte de seu rosto
Odilon Lopez em filme doméstico em Super-8 realizado durante os anos 1960 e 1970, depositado em uma VHS - Vanessa Lopez e Lorenna Rocha/Acervo familiar

A primeira parte, intitulada "Com Um Pouquinho… De Sorte", é protagonizada por um casal branco de classe média baixa, vividos por Araci Esteves e Carlos Carvalho. Recém-casados, eles vivem numa casa alugada e aguardam, com alegria e tensão, o nascimento de uma criança. Uma ordem de despejo ameaça a paz de ambos e acaba levando Jorge aos extremos.

Na segunda, "Vida Nova… Por Acaso", um homem negro —Crioulo, interpretado pelo próprio Odilon— e outro branco, papel de Francisco Silva, que acabaram de sair da prisão, tentam ganhar a vida pelas ruas do centro de Porto Alegre. Entre um furto e outro, Crioulo conhece a Loira —Angela Grosser— e se envolve em uma história violenta num relacionamento interracial.

Em cada uma das histórias, há momentos em que os casais visitam parques ao ar livre, cenas que simbolizam a união entre eles. De um lado, Maria e Jorge celebram, felizes, o relacionamento. Já no passeio de pedalinho entre Crioulo e Loira, o encontro figura o início de uma tragédia tão violenta como aquela que encerra o primeiro episódio.

a foto mostra o cineasta odilon lopez apontando, com um lápis, para um mapa do Rio Grande do Sul que está em cima de uma mesa. ele é um homem negro retinto de cabelos crespos e curtos
O cineasta Odilon Lopez, diretor de 'Um É Pouco, Dois É Bom', de 1970 - Acervo familiar

Nesse sentido, as duas sequências conectam as partes do filme, ainda que de maneira opositiva. Com certo tom pessimista, o longa de Odilon Lopez se posiciona criticamente em relação às marcas da modernização em centros urbanos, às desigualdades sociais e, no caso da segunda parte, ao racismo.

As complexas nuances do namoro entre Crioulo e Loira fizeram com que o crítico Luiz Joaquim, após uma exibição na Mostra de Cinema de Ouro Preto, chamasse o filme de "Corra!" brasileiro, numa referência ao terror de 2017 dirigido por Jordan Peele.

Assim como no filme do vencedor do Oscar de melhor roteiro original, a garota aparentemente inocente leva o homem negro para dentro de sua casa, expondo-o a perversas situações de preconceito racial.

A digitalização de uma obra tão singular como esta pode estimular não só os estudos sobre a historiografia do cinema negro e brasileiro, como coloca diante de nossos olhos um filme em que um diretor negro, para além de pensar as subjetividades pretas em tela, também se lançou a criar e representar a branquitude.

A criação da nova cópia digital é compartilhada com grande entusiasmo, especialmente pela utilização dos negativos originais em película como matrizes de digitalização, material que estava depositado desde 1989 na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, em excelente estado de conservação.

Com isso, como explica a preservadora audiovisual Débora Butruce, coordenadora técnica do processo de digitalização, torna-se possível corrigir a deterioração cromática —isto é, o esmaecimento ou perda dos canais de cor— que estava visível na cópia de exibição.

A expectativa é que a versão em 4K ressalte a potencialidade estética da fotografia, cenografia e figurinos do filme, colaborando para uma marcante experiência dentro da sala de cinema.

a foto registra uma etapa do processo de digitalização. nela, imagens do filme aparecem lado a lado, em dois monitores de computador, junto a outros marcadores técnicos
Etapa de marcação de luz do processo de digitalização do filme "Um é Pouco, Dois é Bom" na Link Digital - Débora Butruce/Mnemosine Serviços Audiovisuais

"Um É Pouco, Dois É Bom" também nos fornece elementos que colaboram para um debate mais amplo em torno das complexas disputas em torno da ideia de origem ou fundação do cinema negro no Brasil, nos distanciando da chancela do pioneirismo para nos estimular a investigar a pluralidade de representações e realizações cinematográficas de cineastas negros e negras.

O processo de digitalização ainda reservou uma grande surpresa. Algumas sequências dos negativos originais se encontram mais longas ou com uma ordenação de planos diferentes da cópia mencionada.

Não se sabe qual teria sido a motivação desses cortes posteriores e se eles foram feitos pelo próprio diretor. O que conta é que esse fato pode trazer novidades importantes para se pensar o contexto histórico da época e o cinema feito por um realizador negro numa região do país que é, ainda, marcadamente elitista.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.