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Ana Maria Magalhães

Preservação de filmes é menosprezada no Brasil

Gestores públicos precisam entender urgentemente a importância da conservação da memória do cinema nacional

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Ana Maria Magalhães

Atriz, diretora, produtora e roteirista de cinema

[RESUMO] Estúdios, cinematecas e fundações internacionais têm investido na preservação e na restauração de filmes antigos, uma tarefa urgente que o cineasta Martin Scorsese comparou ao tique-taque de um relógio. O Brasil, que já perdeu inúmeras obras, pode assistir ao desaparecimento de outra parcela da sua cinematografia por negligenciar a conservação em políticas para o audiovisual.

O Brasil ainda não despertou para a necessidade de preservar e restaurar seus filmes, embora o tema esteja na ordem do dia do cinema mundial. Não é para menos. A fragilidade do suporte fotoquímico utilizado no cinema ao longo do século passado já levou ao desaparecimento de inúmeras obras, e os filmes realizados antes da transição digital no século 21 devem ser transpostos para o novo formato a fim de possibilitar a sua exibição em todos os meios.

Atualmente, a projeção digital é realizada por meio do DCP (pacote de cinema digital, na sigla em inglês) armazenado em um HD externo conectado ao projetor da sala de cinema que "ingesta" o arquivo do filme ou que é enviado pela internet no caso de veiculação em TVs e plataformas de streaming.

John Travolta em cena do filme "Um Tiro na Noite" (1981), de Brian De Palma, durante exibição em praça de Bolonha, em junho deste ano, no Festival Ritrovato, dedicado ao restauro e difusão de filmes clássicos - @turismoER no X

Preservar quer dizer guardar os filmes adequadamente em ambiente seco e refrigerado, de preferência com a digitalização das matrizes e de uma cópia em bom estado que servem de base para eventual restauração.

Mesmo armazenados em cinematecas e outras instituições em condições adequadas, nem sempre esses materiais estão preservados. Com o passar do tempo, os negativos se deterioram e, se chegam ao ponto de avinagrar, estarão perdidos para sempre. Por isso, Martin Scorsese compara a necessidade da preservação ao tique-taque do relógio, uma corrida contra o tempo.

Mas a digitalização é apenas o primeiro passo para proteger a integridade e o acesso às imagens contidas nos filmes. Muitas vezes é preciso restaurá-las, o que significa identificar no negativo original os fotogramas arranhados, cobertos por nódoas ou com as cores esmaecidas, e compará-los com as mesmas imagens em matriz secundária ou cópia preservada. As informações que estiverem mais limpas serão clonadas nas imagens danificadas para repará-las.

É um trabalho delicado como toda restauração, mas vale a pena. A célebre montadora Thelma Schoonmaker, parceira de Scorsese de longa data, disse com razão que recuperar o projeto original do realizador é como realizar um milagre.

Os grandes estúdios perceberam que a comercialização de filmes das décadas passadas pode ser rentável na era digital. Devido ao adiantado da hora, têm restaurado boa parte de sua produção, às vezes em parceria com cinematecas e fundações internacionais que, por sua vez, restauram filmes independentes de vários países, entre os quais obras-primas.

Filmes do mudo ao sonoro, do preto e branco ao technicolor, do western ao suspense, do clássico ao underground são vistos nos festivais, nas televisões, em plataformas de streaming e até nos cinemas. As cinematografias estadunidense, europeia e de outras partes do mundo têm levado a sério reavivar antigos tesouros que deslumbram e educam.

Em 2023, cinco filmes mexicanos dos anos 1940 estavam em cartaz em Paris, de um total de 25 restaurados pela Televisa, que pretende fazer o mesmo com mais 400 títulos, como anunciado no Cinema Ritrovato.

Esse festival, promovido pela Cinemateca de Bolonha e frequentado por historiadores, diretores, produtores, atores, roteiristas, cinéfilos, restauradores e pesquisadores, atrai um grande público de todas as idades para assistir a centenas de filmes restaurados que, durante dez dias, são exibidos nas salas de cinema.

Ilustres profissionais do cinema mundial dispensam o tapete vermelho. Conversam sobre suas trajetórias, filmes, experiências e pensamentos em palestras abertas ao público. Palco e plateia têm em comum a percepção do cinema como arte e difusor de conhecimento.

A reunião anual da Fiaf (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) é recepcionada pelo festival, e as restaurações realizadas pelo laboratório L'Immagine Ritrovata, em parceria com instituições como a Cinemateca Francesa e a Film Foundation, circulam pelo mundo.

A nota dissonante é a rara presença de obras brasileiras nesse festival e no seu congênere em Lyon, promovido pelo Instituto Lumière e o seu diretor Thiérry Frémaux, também delegado-geral do Festival de Cannes. Ainda não percebemos a importância política, econômica, histórica e artística da preservação e do restauro fílmico.

Por aqui, esses trabalhos dependem do esforço individual de realizadores ou herdeiros e da sua capacidade de levantar recursos, conduzir a preservação pela atualização tecnológica dos filmes e a sua restauração. Por isso, temos pouquíssimos filmes brasileiros restaurados.

Assim, a cinematografia brasileira produzida anteriormente à chegada do digital corre o sério risco de ter a sua história apagada até desaparecer totalmente devido à inviabilidade de exibição dos filmes no antigo formato e à deterioração de suas matrizes. Já perdemos bastante e podemos perder muito mais.

Negligenciar a conservação das obras também significa um desperdício dos esforços pessoais, criativos e empresariais de gerações de realizadores e do empenho dos gestores do audiovisual ao longo do século 20, bem como a relegação ao esquecimento de grandes momentos do cinema brasileiro reconhecidos mundialmente.

Outro motivo primordial para a preservação e a restauração é que as imagens contidas nos filmes revelam a nossa história, nossas visões de mundo, nossos modos de vida nas diferentes épocas —a cultura, a política, a memória do país. Seu objetivo final é a exibição das obras ao público em geral.

Depois, certamente contribuirão para a difusão de conhecimento e formação de plateia, informação a historiadores e pesquisadores, e para o deleite dos cinéfilos. Aos estudantes e profissionais de cinema, o conhecimento da técnica e da linguagem do passado ilumina realizações presentes que projetam o futuro. Grandes filmes são bússolas para as gerações de hoje e para as que virão.

É urgente que os próprios produtores, realizadores independentes e atuais gestores do audiovisual compreendam a importância de conciliar o passado e o presente da cinematografia do país.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o plano de ação da Lei Paulo Gustavo da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa prevê a destinação de cerca de R$ 100 milhões para o audiovisual, mas apenas 1,5% desse valor será voltado ao edital de apoio à memória e preservação. Serão selecionados somente nove projetos para a digitalização de acervos e nenhum para a restauração.

No âmbito municipal, a Riofilme lançou editais para produção, distribuição e exibição da ordem de R$ 64 milhões, sem que haja nenhuma destinação para preservar e restaurar. Como disse Gustavo Dahl, não se trata de criticar o descaso histórico com as imagens que o país produz no cinema e indicar a sua dificuldade em assumir uma identidade, mas de "sinalizar dramaticamente a urgência de uma atuação na salvaguarda de um patrimônio cultural e econômico" —uma questão também de autoestima.

A boa notícia é que tem se falado sobre o assunto em alguns fóruns e festivais de cinema. Esperamos que gestores e demais agentes passem das conversas à ação, enquanto um dos melhores restauradores entre os poucos existentes no país roda pelas ruas de São Paulo trabalhando como motorista de aplicativo.

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