Descrição de chapéu Folha Mulher

Quem é Adelia Sampaio, primeira diretora negra de ficção no Brasil

Ela lançou em 1984 o longa 'Amor Maldito', inspirado no caso real dos embates de uma lésbica com a Justiça

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São Paulo

[resumo] Primeira mulher negra a lançar um filme de ficção no Brasil, Adelia Sampaio, hoje celebrada em festivais, venceu adversidades sociais e o machismo do meio cinematográfico para produzir, em sistema cooperativo, “Amor Maldito” (1984), caso real dos embates de uma lésbica com a Justiça.

O advogado de acusação, apertando o punho e olhando direto para a câmera, vocifera: "Pessoas como a ré são um câncer que deve ser extirpado da família cristã, para que não dissemine as suas raízes malditas na sociedade em que vivemos livremente".

A ré, no caso, é a protagonista de "Amor Maldito" (1984), longa-metragem de estreia de Adelia Sampaio, a primeira mulher negra a lançar um filme de ficção em circuito no Brasil.

A personagem está sob julgamento por, alegadamente, ter assassinado sua companheira --uma ex-miss que, como vemos nas cenas iniciais, se jogou da janela de seu apartamento. O que se julga no tribunal, o espectador logo percebe, não é um crime, mas o estilo de vida das duas mulheres lésbicas. A acusação fala menos sobre evidências jurídicas e mais sobre as morais, dirigidas a um júri que bem representa a tal família tradicional brasileira.

Mas Fernanda (Monique Lafond), a ré, não busca se esquivar mesmo sob artilharia pesada. "Eu quero deixar bem claro que os insultos não aderem a minha pele. Não se aprofundam no meu sangue. Eu sou uma mulher assumida", afirma, numa das últimas sequências do filme. "Eu amava Sueli. Sua morte é um pouco da minha própria morte." Também olha direto para o espectador.

O filme, inspirado em caso real que a diretora acompanhou nos autos, não se furta a tomar posição. "Fiz os meus curtas acreditando que um dia eu faria um longa. E não seria um longa qualquer", diz Adelia, hoje com 75 anos, à Folha. "Queria fazer um filme em que eu pudesse gritar coisas que as pessoas não podiam gritar."

A cineasta encontrou o tema do seu tão ansiado longa ao ler no jornal Última Hora sobre o suplício da executiva lésbica no sistema de Justiça --uma história que a tocou mesmo não sendo, ela própria, homossexual. Tinha que colocar no roteiro, segundo ela, "a violência que era esse tribunal".

"É marca do cinema da Adelia tratar do cotidiano com a pegada social. Isso por si só dá a ela uma importância imensa", afirma a pesquisadora Edileuza Penha de Souza, da Universidade de Brasília. "O fato de ela não trazer a questão racial para os seus filmes não invalida de forma alguma a importância da sua produção. É preciso reconhecer e conhecer o trabalho dessa mulher." 

A tese de doutorado defendida por Souza na UnB em 2013 foi fundamental para estabelecer o pioneirismo de Adelia na cinematografia negra brasileira. "O seu silenciamento foi uma condenação por ser uma mulher negra. [Era um ambiente] machista, branco, elitista. Quem estava fazendo cinema naquele momento era todo mundo da classe média."

Amante de cinema desde a primeira experiência numa sala escura --vendo "Ivan, o Terrível", de Sergei Eisenstein, levada pela irmã Eliana, que se tornaria sua produtora--, Adelia botou na cabeça que trabalharia naquele universo. "Todo mundo achava [essa ideia] uma aberração, exceto a minha irmã", afirma ela. 
Ela, de fato, conseguiu ainda muito jovem entrar no núcleo do cinema novo. Trabalhando como vendedora, encontrou nos classificados de um jornal uma vaga de telefonista. A anunciante era a distribuidora Difilm, que abrigava grandes nomes do cinema brasileiro daquele tempo. Era 1969.

"Peguei o endereço, cheguei lá numa tarde, entrei e tinha um monte de homem na sala. Eu disse: 'Vem cá, é aqui que está precisando de telefonista?'. Aí o [cineasta] Leon Hirszman olhou e disse [aos outros]: 'Ué, alguém aí tá pedindo telefonista?'. Eu mostrei o anúncio, ele já me deu um papel e pediu para fazer uma ligação para ele."

Passou o resto da tarde fazendo ligações para "aqueles doidos". Nem discutiram salário. No cair da noite, quando ela levantou o assunto para o crítico e cineasta David Neves, ele desconversou, pegou o telefone e ligou para o produtor Luiz Carlos Barreto, fundador da distribuidora. "Aí eu ouvia o Barretão falando no viva-voz: 'É bonitinha?'."

Acertaram o pagamento em três salários mínimos; foi o gancho para a jovem começar a trabalhar “enlouquecidamente e muito feliz". "Ouvia o dia inteiro histórias sobre filmes, alguns se realizaram e outros não. Mas fui descobrindo a técnica da narrativa fílmica."

Sem perder de vista a vontade de sentar na cadeira de diretora, Adelia foi acumulando conhecimento e prática. Incentivada pelo amigo José Medeiros --referência do fotojornalismo que depois fez direção de fotografia de filmes como "A Falecida" (1965) e "Xica da Silva" (1976)--, partiu para fazer o primeiro curta, "Denúncia Vazia" (1979).

Medeiros, porém, disse que não estava disponível para filmar com ela, e a fotografia ficou a cargo de seu assistente, Paulão. Na primeira cabine de exibição, com o filme finalizado, o amigo cumprimentou a diretora e contou o verdadeiro motivo pelo qual tinha se recusado a trabalhar com ela. "Ninguém vai ter dúvida de que foi você que dirigiu esse filme, Adelia. Se fosse eu na fotografia, iam dizer que fui eu."

A hipótese ecoa a narrativa de diversas diretoras ao longo da história do cinema. A pioneira Cléo de Verberena (1904-1972), por exemplo, durante toda a vida (e mesmo na posteridade) teve que enfrentar acusações de que quem dirigia seus filmes, na verdade, era o marido produtor.

Os passos seguintes de Adelia, em direção ao primeiro longa, não foram simples. Ao enviar a sinopse de "Amor Maldito" à estatal Embrafilme, buscando financiamento, ouviu que "esse tipo de discussão não interessava de maneira nenhuma a qualquer órgão competente do país". A epopeia de juntar dinheiro para rodar o filme, então, envolveu uma peça comunitária encenada na empresa Furnas, uma engenheira aspirante a mecenas e parcerias cativadas pelo carisma da diretora. "Acabou virando o primeiro longa de cooperativa feito no Rio de Janeiro." 

"O cinema brasileiro, verdadeiramente, é uma indústria de pires na mão. Eu sei porque fui diretora de produção. Se eu entro na sua casa e você tem um sofá que eu preciso, eu vou lá e peço. Se você não deixar eu levar, eu filmo na sua casa", diverte-se. "Acho que é por isso que a gente conquista as pessoas. Cara de pau e o desejo de fazer a coisa acontecer."

"O dinheiro disponível é distribuído numa estrutura elitista, geralmente para os mesmos grupos e as mesmas produtoras, de homens brancos ricos", comenta a curadora e pesquisadora Janaína Oliveira, coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro. "Esse processo [de financiamento coletivo] diz muito sobre a forma de a Adelia fazer cinema."

Os entraves ficam evidentes quando se vê o tempo que levou para uma segunda cineasta negra lançar um filme de ficção sem codiretores homens. Conforme conta Oliveira, o intervalo foi de 34 anos, rompido por "Um Dia com Jerusa" (2018), dirigido por Viviane Ferreira.

Mesmo com "Amor Maldito" filmado e pronto, os obstáculos não cessaram. Faltava lançar o filme. Adelia bateu na porta de um exibidor paulista, que disse ter adorado o filme, mas que não poderia lançá-lo daquele jeito. Ofereceu uma alternativa: "A gente traveste o filme de pornô e eu lanço".

O longa de fato tem nudez e algumas cenas mais picantes, mas fica longe de tratá-las como prioridade, como faziam tantos filmes daquele momento de ápice da pornochanchada. Após se reunir com a equipe, Adelia topou a proposta. Ao chegar à reunião seguinte com o exibidor, o layout libidinoso do cartaz com Wilma Dias (Sueli) de topless já estava pronto.

"Amor Maldito" estreou em poucas salas de São Paulo e, mesmo sem divulgação e com o peso de um certificado de censura (impróprio para menores de 18 anos por "situações de lesbianismo"), acabou fazendo uma carreira de respeito.

"Eu fui salva pelo Leon Cakoff [crítico e fundador da Mostra Internacional de Cinema de SP], que faleceu e eu não disse obrigada", comenta Adelia. "Ele viu o filme e fez meia página [na Folha] dizendo 'como é que pode?'. A crítica é muito bonita."

"Vá lá que o público tenha faro para o sucesso, mas ninguém é obrigado a adivinhar o que se passa por trás de um produto obrigado a se vender de acordo com as regras sensacionalistas do momento", escreveu Cakoff na edição de 17 de agosto de 1984. "'Amor Maldito' é um raro oásis que não pode ser ignorado."

O filme ampliou circuito e bilheteria, foi para o Rio de Janeiro, para festivais internacionais, pagou suas dívidas. Fez história.

Prolífica na realização de curtas, Adelia dirigiu dois outros longas, ambos documentários: “Fugindo do Passado” (1987) e “AI-5 - O Dia Que Não Existiu” (2001) —este, em codireção com o jornalista Paulo Markun, reproduz o clima histórico no Congresso em 1968 e evidencia a proximidade da diretora com a oposição à ditadura.

Seu marido de toda a vida, o jornalista Pedro Porfírio (1943-2018), foi preso político dos militares. As homenagens soviéticas nos nomes de seus filhos, Vladimir e Geórgia (esta, hoje premiada figurinista da Globo), ilustram a carga ideológica que dominava a casa naqueles anos 1960. Por conta disso, Adelia passou por provações que iam além da já dura labuta de mãe que precisa criar os filhos sozinha.

Incluíram, por exemplo, uma cusparada de uma vizinha no meio de um elevador, seguida do vitupério "comunista!" numa cena dantesca encenada em frente da família; assim como a perda de um filho, ao sofrer truculência policial durante a primeira gravidez, em meio a uma manifestação na Cinelândia, aos 18 anos.

Não que infortúnios familiares fossem inéditos na vida de Adelia até ali. Quando criança ela foi separada da mãe, Guiomar, que trabalhava como funcionária doméstica no Rio, numa decisão autoritária da patroa. A menina foi despachada, sem saber, para estudar em um colégio interno em Minas Gerais. Nem teve chance de se despedir da mãe antes de entrar no avião.

A cineasta gosta de contar como era apegada ao seu par de sapatinhos, por achar que eles poderiam levá-la de volta à mãe e à irmã. Foram sete anos até que Guiomar conseguisse reunir o dinheiro necessário para se juntar à filha --a patroa ainda cobrava dela a mensalidade do internato, com preço do uniforme e tudo. "Mamãe na verdade foi uma escrava."

Quando a reportagem fez novo contato com Adelia, semanas depois da entrevista, para saber do andamento de seu novo projeto, o longa "A Barca dos Visitantes", ela respondeu por WhatsApp que tentava uma coprodução fora do país: "Se pensar bem, fui filha de empregada doméstica, não devo agradar ao ministro nem ao chefe maior".
 

Adelia só descobriu seu pioneirismo como artista há poucos anos, quando os organizadores de uma homenagem na Cinemateca do MAM ligaram para ela, após serem alertados por Edileuza Penha de Souza. "Ah, para, não inventa", a cineasta contou ter sido sua reação. Souza também é hoje responsável por organizar a Mostra de Cinema Negro Adelia Sampaio, em Brasília, que teve sua terceira edição em 2019.

“Primeiro, homenagem se faz aos vivos. E [o segundo motivo foi] a importância do cinema de Adelia”, diz a pesquisadora sobre as razões por trás do nome da mostra. “Hoje, há fatores que possibilitaram um maior número de cineastas negras: as ações afirmativas nas universidades, dos governos do PT, e a digitalização, [que permitiu ter] agora uma meninada fazendo cinema no celular.”

Janaína Oliveira complementa: “Quem tira Adelia do ostracismo é também o interesse de uma geração que surge em busca de referenciais. Apesar de tudo, esses processos educacionais não podem ser revertidos".

"Tem coisas muito emocionantes", conta Adelia. "Num desses eventos, uma menina chegou para mim, magrinha, miudinha, levantou e disse assim: 'Olha, eu não vou perguntar nada. Sabe o que é, eu desde que nasci estou procurando um espelho para me olhar. Agora achei, é você'."


Walter Porto é repórter da Ilustríssima

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