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Díptico 'Mal Viver' e 'Viver Mal' tem mães cruéis e filmes brilhantes

Filmes de João Canijo, sob a influência de Bergman, acompanham trama em hotel por perspectivas diferentes

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Mal Viver

  • Quando Estreia nesta quinta (18)
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Anabela Moreira, Rita Blanco, Leonor Silveira
  • Produção Portugal, França, 2023
  • Direção João Canijo

Viver Mal

  • Quando Estreia dia 22 de fevereiro nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira
  • Produção Portugal, França, 2023
  • Direção João Canijo

Um hotel modernista em Ofir, norte de Portugal, é o cenário para o díptico com o qual João Canijo voltou a conquistar boa parte da crítica portuguesa: "Mal Viver" e "Viver Mal". Exibidos na última edição do Festival do Rio, os dois longas chegam agora ao circuito brasileiro.

Cinco mulheres de uma mesma família vivem nesse hotel com uma pequena cadela chamada Alma. O marido de Piedade, personagem de Anabela Moreira, faleceu há poucos dias e a família tenta superar o luto trabalhando no hotel.

Cena do filme 'Viver Mal', de João Canijo
Cena do filme 'Viver Mal', de João Canijo - Divulgação

Em "Mal Viver", que chega nesta quinta-feira (18), quase não vemos os hóspedes. É como se o hotel estivesse abandonado, servindo de moradia para uma família disfuncional. Mas os hóspedes estão ali. Sabemos de seus pedidos, vemos a chegada de alguns e eventualmente os ouvimos ao longe.

"Viver Mal", com estreia só em 22 de fevereiro, é um filme-espelho. Nele, vemos principalmente os hóspedes. Diferente do díptico "Smoking/No Smoking", de Alain Resnais, as oposições não se dão pelas escolhas dos personagens, mas pelo ponto de vista da câmera.

O que pode ser percebido com dificuldade em um, é mostrado claramente no outro. Os filmes se complementam de forma engenhosa, a ponto de poder se considerar um só filme. A visão do segundo nos faz querer voltar ao primeiro, qualquer que seja a ordem escolhida.

Canijo trapaceia um pouco e divide a segunda parte do díptico em três capítulos livremente inspirados em peças de Strindberg. Temos a atriz meio fútil e seu namorado cafajeste; a mulher madura, vivida por Leonor Silveira, que maltrata a filha e se envolve sexualmente com o genro; e uma outra mulher, interpretada por Beatriz Batarda, que acompanha a filha e sua namorada, mas desaprova a relação entre elas.

Sendo moradia e local de trabalho em "Mal Viver", o hotel exerce na família uma clausura, que deixa as emoções exacerbadas. Todos ficam à flor da pele e a única que consegue alguma fuga é Raquel, irmã de Piedade. Ela até se envolve sexualmente com um dos hóspedes, envolvimento que fica mais claro —com quem e de que jeito— em "Viver Mal".

Nos dois longas, conversas simultâneas revelam que Canijo consegue fazer, esteticamente e em português, o que Robert Altman nem sempre conseguia em inglês, em filmes como "Jogando com a Sorte", de 1974, ou "Nashville", de 1975.

Visto num cinema com boa qualidade de som, temos a impressão de que as pessoas na plateia não param de falar, até percebermos que tudo está no som do filme. Ou quase tudo, já que as pessoas têm falado muito mesmo nas salas de cinema.

O procedimento das conversas paralelas talvez tenha se consolidado, na carreira de Canijo, em "Sangue do Meu Sangue", de 2011, um de seus filmes mais controversos, espécie de estudo sobre a humilhação humana quase tão incômodo quanto o de "Noites de Circo", de Ingmar Bergman.

Essas citações, contudo, não são óbvias, muito menos coisas de cinéfilo exibido. Canijo, que assume a influência de Bergman, trabalha com ideias que por vezes encontram as de outros poetas da imagem. Há, por outro lado, ao menos uma citação evidente: a de "A Comédia de Deus", filme mais celebrado de João César Monteiro que pode ser visto numa tela de TV.

Canijo explicita essa filiação, ao mesmo tempo em que chama para a direção de fotografia a jovem e premiada cineasta Leonor Teles, dando a ela bastante liberdade criativa, uma força colaborativa e crítica.

Uma consequência dramática da polifonia de vozes é que muitas vezes se ouve o que se fala por trás das portas. Coisas duras são ditas diretamente, mas ouvidas indiretamente por outras personagens, por curiosidade ou maldade, eventualmente por masoquismo.

A câmera por vezes capta essas conversas entre reflexos, portas entreabertas, ângulos enviesados. A engenhosidade do som encontra eco no comportamento da câmera em uma impressionante destreza formal.

Se há uma protagonista, em "Mal Viver", é certamente Piedade. Em "Viver Mal", uma trama partida em três, o protagonismo tende a ficar com a personagem de Leonor Silveira, Elisa, da trama do meio. Até por ser a mais forte das mulheres em cena. E a mais cruel também. A humilhação que Piedade sofre é impingida por Elisa à sua própria filha.

Mas o protagonismo de fato, nas duas partes, está com o hotel, o lugar onde tudo acontece, onde as emoções são exacerbadas e as relações encontram seu ponto de ruptura. É como se esse local sinistro exalasse um gás que deixasse todos transtornados.

Não sabemos, por exemplo, o real motivo de tanta hostilidade na família de Piedade. Algumas falas nos dão pistas, sem deixar clara uma construção psicológica das personagens. É um filme de mães cruéis, ou incompreendidas em seu rigor.

Mesmo entre os diferentes núcleos de hóspedes, percebemos alguns cruzamentos de intenções que podem fazer o espectador menos atento confundir os dramas de todas essas pessoas. As relações das mães com suas filhas espelham a estilhaçada relação de Piedade com sua mãe e também com sua filha.

É cinema da crueldade, de certo modo, em que a calibragem de emoções e reações precisa ser muito precisa, sob o risco de descambar para o sadismo com os espectadores. Nesse sentido, o diretor fica muito perto do limite, posição sempre arriscada.

"Mal Viver" é ligeiramente superior, um drama tocante sobre superação e compreensão. "Viver Mal", pela estrutura e pela radicalização nas conversas paralelas, impressiona pelo excelente trabalho com o som e com as escolhas dos recortes de cada grupo de hóspedes.

No fundo, o díptico de Canijo é um brilhante exercício narrativo que denota um mal-estar aparentemente incontornável na classe média portuguesa.

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