Jards Macalé relê obra de Zé Kéti com Sergio Krakowski Trio em disco político

'Mascarada' resgata admiração do músico pelo sambista em arranjos experimentais que destacam posicionamento das letras

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Rio de Janeiro

Pandeiro, piano e guitarra parecem caminhar a esmo, tateando o ar e construindo uma atmosfera rarefeita e tensa. Depois de um minuto, uma voz dá forma mais definida àqueles sons, entoando os versos conhecidos de "Opinião", cantados em andamento bem mais lento do que o de costume. As palavras ganham outro peso. A certa altura, ouvimos uma lista de nomes de negros vítimas da violência policial.

"Opinião" é uma das faixas de "Mascarada", álbum no qual Sergio Krakowski Trio e Jards Macalé unem forças para reler canções de Zé Kéti. A densidade angustiada da gravação, a inventividade livre do arranjo, a carga política presente ali —"Opinião" guarda muito das características do projeto, registrado em 2019 em Nova York e lançado agora em vinil e nas plataformas de streaming pela gravadora Rocinante.

Capa do álbum 'Mascarada', de Sergio Krakowski Trio e Jards Macalé
Pintura de Iberê Camargo que ilustra capa do álbum 'Mascarada', de Sergio Krakowski Trio e Jards Macalé - Divulgação

"Mascarada" foi uma decorrência do trabalho que o Sérgio Krakowski Trio —grupo fundado em Nova York que, além do percussionista que o batiza, tem o guitarrista Todd Neufeld e o pianista Vitor Gonçalves— vem desenvolvendo nos últimos anos.

Depois de lançar em 2016 um disco de composições próprias, eles começaram a fazer experiências sobre o samba, inclusive com canções como "Mascarada". "Até que um dia Todd sugeriu que fizéssemos um disco em homenagem a Zé Kéti", diz Krakowski. "E ele mesmo trouxe a ideia de ser com Jards".

Na hora, Krakowski aprovou com entusiasmo. Veio à sua memória o dia em que Jards deu uma canja numa apresentação do Anjos da Lua —grupo que comandava bailes de samba que marcaram época na Lapa nos anos 2000 e que tinha o percussionista na sua formação.

Krakowski conta como ficou impressionado ao dividir o palco com Jards naquela ocasião na Lapa. "O que une Jards e o trio é a reverência ao silêncio. O subentendido mais do que o explícito. Muito da expressividade dele se dá por aí. E naquela noite ele conseguiu criar a mágica, essa expressividade do silêncio, no Clube Democráticos, naquela zona, naquele esporro, naquela energia de festa. Tinha que ser ele agora. E Jards tem uma história de vanguarda, é o maluco que toparia essa aventura."

Pode-se dizer, porém, que a história de "Mascarada" começa bem antes, em 1965. Foi quando Jards começou a tocar no espetáculo "Opinião", que reunia Maria Bethânia —substituindo Nara Leão, cantora da formação original—, João do Vale e Zé Kéti. "Me tornei amigo de Zé Kéti. Saía com ele pela cidade, pra beber pelos bares, conhecendo seus sambas", afirma Jards.

Já ali, Jards se mostrava encantado pelas criações do compositor. "Em ‘Acender as Velas’, tem aquele momento em que a melodia sobe: ‘O doutor chegou tarde demais’. Isso é maravilhoso, é Villa-Lobos. E faz todo sentido com o que está sendo dito na letra", avalia.

"Acender as Velas" é uma canção sobre a banalidade da morte na favela. "Opinião" trata da manutenção da dignidade sob a opressão, na fala de uma pessoa que defende seu direito de morar no morro. "Prece de Esperança" clama pela paz "para não ver o mundo se matar". "Peço Licença" pede licença para o exercício do amor.

As quatro estão no disco. Krakowski conta que as letras dos sambas de Zé Kéti também motivaram a escolha por seu nome.

"O que ele fala é muito importante para a gente", diz o percussionista, ressaltando que a música de Zé Kéti não se resume ao aspecto social. "Ela tem o caráter da política mas também o do lirismo sem barreiras. Zé Kéti tem essa síntese, ao mesmo tempo é poético e combativo".

Krakowski vê na obra de Zé Kéti um posicionamento, poético e combativo, no mundo de hoje. Jards reconhece nela "uma conversa com o Brasil de hoje e de sempre". "Como ele canta em ‘Eu Sou o Samba’, ‘Essa é a melodia de um Brasil feliz’. A gente tá procurando esse Brasil feliz há muito tempo".

A ideia do trio, na qual Jards se engajou de peito aberto, era reler Zé Kéti de maneira livre. Os quatro ensaiaram juntos e, quando adquiriram intimidade com o jeito de tocá-las, partiram para a gravação, num ambiente aberto de improvisação.

"Me lembrou meu disco com Naná Vasconcellos, ‘Let’s play that’", diz Jards. "Gosto de trabalhar assim. O ensaio é libertário, você constrói o chão no qual depois você pode se soltar".

Krakowski define a música do trio como "reverência ao samba sem cair no formalismo". "Nós respeitamos o pulso do samba, suas harmonias, na medida em que saímos deles e voltamos a eles. É uma tradição de invenção sobre o samba na qual nós temos interlocutores: o próprio Jards, Itamar Assumpção e mesmo o Paulinho da Viola de momentos como ‘Sinal fechado’".

Jards sintetiza: "‘Mascarada’ desmascara o samba. O samba fica livre". Jards considera a possibilidade de desagradar aos mais puristas. "Se tiver algum preconceito, e daí? Invenção é invenção. O samba também é uma invenção do povo brasileiro".

Mascarada - Zé Kéti

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