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Filmes Argentina

'O Mal que nos Habita' confronta bom gosto argentino com tripas

Filme de terror brinca com ciclo de crises políticas do país em comunidade rural que lida com epidemia de possessões

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O Mal que nos Habita

  • Quando Estreia nesta quinta (1°) nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Ezequiel Rodriguez, Demián Salomon e Luis Ziembrowski
  • Produção Argentina, Estados Unidos, 2023
  • Direção Demián Rugna

O primeiro corpo desfigurado de "O Mal que nos Habita" aparece em menos de cinco minutos de filme, uma cena chocante por dois motivos. Para começar, é um torso inferior com duas pernas no meio de uma clareira, cortado como por uma serra na altura do quadril —ou seja, conclui um personagem, impossível a mutilação ser obra de um animal.

O segundo motivo é que a situação acontece no interior da Argentina, numa história protagonizada e produzida por gente de lá. Uma mutilação assim, com as tripas expostas sem muita cerimônia, é tudo aquilo que o brasileiro não espera do vizinho em uma sala de cinema.

O Mal que nos Habita
Cena do filme 'O Mal que nos Habita', de Demián Rugna - Divulgação

Os filmes argentinos há anos têm lugar de honra nas salas brasileiras, servindo a tese de alguns de que seriam superiores à produção nacional. Uma tese para lá de vira-lata, que desconsidera a diversidade dos dois países e se alimenta de um desejo por dramas nobres, com cara de bem produzidos. Coitado de Ricardo Darín, ator-fetiche de uma geração de cinemas que mais lembram um bistrô.

Este bom-mocismo passa longe de "O Mal que nos Habita", ainda que ele —como o título sugere— esteja ali nas entrelinhas das cenas mais putrefeitas do filme de Demián Rugna. A trama, se vamos ser justos, tem algumas intenções com o estado atual da Argentina, mesmo que saindo meses antes da vitória nas urnas do presidente Javier Milei.

A questão é que o longa vive da alienação coletiva dos personagens, que da noite para o dia precisam lidar com uma possessão. O tal corpo descoberto no início pertencia a um mercenário contratado para se livrar de um dos habitantes, que está há um ano com o demônio.

Os vizinhos descobrem a situação com o morto e, depois de atestar que o Estado fará nada por eles, resolvem se livrar do possuído sozinhos.

Se tratando de um filme de terror, pode-se imaginar que o plano dá errado, e o mal, antes contido em uma pessoa, se alastra por toda a comunidade. Os protagonistas, dois irmãos que acompanhamos desde o começo, resolvem então fugir para salvar a si mesmos e suas famílias, outro plano que logo se revela uma enrascada.

Assim, registrando uma ideia ruim atrás da outra, o diretor lida com a recusa de todos em assumir responsabilidade sobre os eventos. A situação só piora perante as ações dos personagens, que se revelam egoístas de primeira linha —com direito a briga de divorciados, quando um deles vai buscar a família.

Se você tirar a assombração da equação, a situação não é muito diferente da vivida pelos argentinos. O país emenda uma crise atrás da outra desde o fim dos governos de Néstor e Cristina Kirchner, em planos de governo que vão e voltam da direita ultraliberal. Aos olhos de Rugna, a recusa é o principal motor do desastre maior que movimenta o país.

O mais intrigante de "O Mal que nos Habita" é o horror, porém, e como ele se apresenta ao público. A violência, em si, pouco se difere da que se vê em outras obras recentes do gênero —em especial as americanas, o que lembra que o longa é uma coprodução americana. Mas ela acontece às claras, sem hesitação por parte da câmera, evitando o suspense em favor do impacto.

Ajuda também a disposição de Rugna a criar situações nauseantes. O possuído do começo, por exemplo, é um homem com obesidade mórbida que sofre com o diabo na pele, cheia de feridas e um inchaço de pus. Com uma visão dessas, dá para entender quando ele implora aos vizinhos que o matem —mesmo que seja um ardil do tinhoso para se libertar dali.

A adesão ao gore nessas horas lembra muito os trabalhos mais inspirados de Lucio Fulci, mestre italiano que inspirou a produção mais trash do gênero com seus filmes cheios de sangue e eviscerações. "O Mal que nos Habita" se mostra um herdeiro digno desse estilo até mesmo quando cai na armadilha clássica de explicar demais a própria mitologia, o que trava a narrativa lá pela metade.

Até lá, porém, o filme oferece uma sequência matadora de momentos brutais, que prendem pelo choque e fascinam pelo encadeamento rápido. Vale um spoiler, uma das cenas mais inacreditáveis acontece na casa da ex-esposa de um dos irmãos.

Enquanto o casal divorciado briga por quaisquer resquícios da separação turbulenta, o enorme cachorro da família de repente abocanha a filha pequena pela cabeça e a arrasta pela sala de jantar e para fora de casa. O ato maligno é tão rápido que dá até náusea, mal dando para a câmera seguir o animal e o irmão da vítima berrar por ajuda.

Nesse momento, pode-se imaginar o defensor da nobreza do cinema argentino vomitando no banheiro do cinema, o que pode ser a intenção do filme. Se isso acontecer nos próximos dias, palmas ao diretor.

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