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Hanne Orstavik ressalta potência da literatura diante do mais nefasto

'Ti Amo', livro de estreia da norueguesa no Brasil, é estruturado como carta a um ser amado que agora está à beira da morte

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Karl Erik Schollhammer

Professor do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Ti Amo

No verão de 2020, a escritora norueguesa Hanne Orstavik perdeu o marido, que tinha câncer. Estavam juntos havia quatro anos, dois anos sem a doença e dois com ela. Ele era seu editor italiano, e os dois viviam juntos em Milão.

"Ti Amo", primeiro livro da autora lançado no Brasil, foi escrito no final desse processo. A história é narrada por uma escritora com as mesmas características de Orstavik, incluindo sua nacionalidade, o que convida a uma rápida identificação biográfica e ao equívoco de que este se trata de um experimento autoficcional.

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A escritora norueguesa Hanne Orstavik, autora de 'Ti Amo' - Linda B. Engelberth/Divulgação

Mas Orstavik não brinca com as fronteiras entre ficção e realidade; para ela, escrever o romance é descobrir algo na relação com o outro e investigar a experiência de se estar próximo da morte.

"Ti Amo" é, assim, um romance que questiona de que maneira a literatura consegue se relacionar com a vida, cristalizar aquilo que na vivência cotidiana desaparece e se torna um rumor irreal, sob o peso da dor e da perda. Por isso mesmo, ressalta a potência da poesia e da beleza que só a literatura pode conferir aos fatos mais cruéis e nefastos da vida.

Escrito no limiar da existência, o relato é estruturado como um diário ou uma carta dirigida a um "tu", num diálogo com o marido que vai morrer. A história se compõe à medida que se desenrolam as peripécias de exames médicos, tratamentos, refeições, encontros com amigos e a aparição de sintomas, tudo isso num período de dez dias.

A narradora está sentada no escritório do seu apartamento em Milão e escreve tendo como vista a cúpula de San Lorenzo, enquanto o marido doente dorme do outro lado da porta fechada. Ela leva o laptop para o hospital quando o acompanha em um exame há muito esperado, e às vezes tenta evitar que ele leia na tela do computador as palavras de seu documento no Word.

Ocasionalmente, o texto salta para o passado próximo, para o tempo que antecede o momento da escrita —o primeiro encontro dos dois, os sinais iniciais de doença. Revisita as viagens e momentos vividos juntos na Dinamarca, na Índia, no Vietnã.

Desde quando a morte entrou na relação dos dois? Sabemos que ele vai morrer, mas, no momento da escrita, ele vive, e o amor ganha forma e substância nas palavras. "Te amo" são as palavras que surgem no lugar do que não pode ser dito. Não me deixe só, por que você vai morrer?

Orstavik escreve na fluência do pensamento e dos registros sensíveis de detalhes do cotidiano. São longas sequências sem pontos que criam um ritmo de procura e uma musicalidade oral de grande beleza. Em outras passagens, o texto se cristaliza em frases pequenas, cujo minimalismo captura de forma sensível a poeira dos acontecimentos.

"Ti Amo" é o 15º romance da escritora desde a sua estreia, há 30 anos. É recorrente na sua obra o tema do que significa amar; como aprender a se abrir para o amor do outro, como ousar sentir e se expor à vida.

Em "Milão", de 2019 —que Orstavik estava terminando quando o marido ficou doente—, o tema era a superação da sensação de não ser digna de ser amada para se entregar e verdadeiramente pertencer ao outro.

Já "Ti Amo" é uma espécie de suplemento radicalmente impiedoso desse exercício da escrita como uma ferramenta para se situar no mundo. É também a maneira de entrar em contato com a própria força vital e ser levada por ela.

Durante viagem ao México, na Feira do Livro de Guadalajara, a narradora vivencia um breve encontro com uma pessoa cuja mera presença a faz sentir uma rara felicidade. É a partir desta sensação que ela começa a escrever "Ti Amo", segundo ela a "forma mais verdadeira de estar com" o amado "em razão de tudo o que não podemos dizer um para o outro nesses dias". "Não vou embora, estou aqui, vou ficar aqui, até que você não esteja mais."

"Ti Amo" é uma pequena joia poética de rara beleza. E evidencia o lugar de destaque de Hanne Orstavik na literatura contemporânea norueguesa, hoje reconhecida por figuras como Jon Fosse e Karl Ove Knausgard.

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