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Tatiana Nascimento exige sensibilidade do leitor em estreia na prosa

Contos de 'Três Tigres Tortas' invocam repertório extenso e aprofundado de questões do ativismo dissidente de gênero

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Bianca Gonçalves

Poeta, performer, tradutora e doutoranda em teoria e história literária na Unicamp

Três Tigres Tortas

Seja como poeta, compositora, editora, tradutora, pesquisadora ou intelectual, Tatiana Nascimento constrói nos vários braços de seu trabalho um corpo cosmológico em que uma parte dialoga com a outra, além de a incorporar e prolongar. O resultado é um todo que produz sentido e efeito estético intrincados e, portanto, complexos, que agitam a zona de conforto de seus potenciais leitores.

contracapa com estampa de onça
Detalhe da contracapa do livro 'Três Tigres Tortas', de Tatiana Nascimento, publicado pela Amarcord - Reprodução

Nascimento se desloca da teoria —como no ensaio "Cuirlombismo Literário" e em outras produções sobre gênero, raça e tradução— para a poesia (escrita, falada e cantada), tensiona e elabora conceitos. Complementando essas imbricações, surge sua estreia na prosa ficcional com o livro de contos "Três Tigres Tortas", publicado pela Amarcord.

Mobilizando o experimentalismo, seja na linguagem ou na concepção de mundos, seus contos tornam as dissidências visíveis a partir de rearranjos inventivos da memória e do afeto. As cinco histórias de "Três Tigres Tortas", que incluem de utopias ecológicas pós-racistas a reminiscências de uma garotinha sobre sua família em "portunhol", imaginam a existência de outros espaços de pertencimento, outras maneiras de ser e agir.

Um sistema jurídico reinventado torna possível mover ações afetivas, com pagamentos feitos por meio de valores simbólicos e ancestrais. A adoção de um calendário lunar permite uma vida com cada vez mais gozo.

O compartilhamento de terapias hormonais indígenas, que substituem a burocracia dos processos de transição de gênero atuais, levam ao desmantelamento de um sistema tecnocrata centrado na Europa —uma sociedade que mescla espiritualidades, combinando a filosofia budista à dos orixás e na qual meditar e contemplar é a norma, não a exceção.

Chama a atenção a maneira como a autora se desvia de descrições essencialistas do sistema sexo-gênero, pois também faz parte de seu projeto perturbar os atalhos e lugares-comuns da legibilidade afetivo-sexual, desde os binarismos comuns do que se entende por feminino e masculino à concepção de família nuclear.

Como grande leitora (e tradutora) de Audre Lorde, Nascimento põe em prática o que a autora de "Unicórnia Preta" certa vez elucubrou —a poesia, enquanto "destilação reveladora da experiência", é fundamental para a vida das mulheres (e, podemos acrescentar, dos demais sujeitos subalternizados do sistema cis-heteronormativo). É ela que transforma nossas esperanças em linguagem para que, depois, elas resultem em ações.

"Três Tigres Tortas" é um livro que demanda, talvez mais do que a maioria das obras literárias que circulam hoje, um repertório extenso e aprofundado de questões prementes no ativismo dissidente de gênero, que envolve desde o exercício prático da coletividade até os chamados estudos "cuir" (do inglês "queer")—dedicado à leitura decolonial do que é considerado "estranho", "ultrajante", "desviante".

Por esse motivo, é uma obra que exige leitores que, senão empenhados, ao menos se deixem tocar por fabulações que conjecturam outras possibilidades de existência.

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