Disco presta homenagem a Maria Sabina, curandeira dos cogumelos mágicos

Obra musical tem ponto de partida canções que a benzedeira cantava em sessões com fungos tidos como psicodélicos

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São Paulo

Não é todo dia que se topa com uma música honrando cogumelos. Menos ainda um álbum inteiro como "Tribute to Maria Sabina", de Lucas Kastrup e Marcelo Bernardes, dedicado à curandeira mazateca que apresentou fungos psicodélicos do México à ciência ocidental.

A obra instrumental chega nesta sexta-feira (5) às plataformas de streaming. Tudo nela é peculiar, não só o tema. Para começar, resulta de uma encomenda feita pela startup de pesquisa psicodélica Scirama, uma das poucas do ramo no Brasil.

Capa de 'Tribute to Maria Sabina', álbum que homenageia Maria Sabina, curandeira dos cogumelos mágicos
Capa de 'Tribute to Maria Sabina', álbum que homenageia Maria Sabina, curandeira dos cogumelos mágicos - Divulgação

Ambos os autores são daimistas, ou seja, associados à religião do Santo Daime. Kastrup, 44, antropólogo com doutorado e pós-doutorado, é há 25 anos baterista e compositor da banda de reggae Ponto de Equilíbrio, de Vila Isabel, no Rio de Janeiro.

Kastrup é membro da igreja daimista Flor da Montanha, fundada há quase 40 anos em Lumiar (RJ) por Mãe Baixinha. Bernardes, responsável com Kastrup pela produção musical de "Tribute", é viúvo de Baixinha e hoje preside a Flor da Montanha.

Músico de sopro e arranjador desde a década de 1970, Bernardes trabalhou com artistas como Moraes Moreira e Maria Bethânia. Também integra a banda de Chico Buarque desde os anos 1980.

O daime, ou ayahuasca, é um chá de origem indígena da Amazônia que provoca visões conhecidas como "mirações". Seu preparo envolve duas plantas, a chacrona, fonte do psicodélico dimetiltriptamina (DMT), e o cipó jagube ou mariri, que contém compostos que facilitam a chegada da DMT ao cérebro.

O álbum "Tribute" tem sete faixas. Em todas o ponto de partida foram músicas que Maria Sabina cantava em sessões com cogumelos Psilocybe em Huautla, México.

Em 1955 ela recebeu a visita de um banqueiro e micologista norte-americano, Gordon Wasson, que dois anos depois publicou reportagem sobre "cogumelos mágicos" na revista Life narrando suas viagens. Com ela, ajudou a deslanchar a segunda voga psicodélica nos anos 1960.

Nas duas últimas décadas, a psilocibina desses fungos se tornou a substância mais estudada para tratamento de transtornos mentais como a depressão. Espera-se que essa droga psicodélica seja aprovada nos próximos anos nos EUA como facilitadora de psicoterapia. A psilocibina já pode ser usada assim por alguns psiquiatras na Austrália.

Sabina morreu na pobreza e rejeitada por seu próprio grupo, que a responsabilizava pela conturbação da vila tornada meca hippie. Com a fama, porém, alguns de seus cânticos acabaram gravados, material utilizado por Kastrup e Bernardes para compor e arranjar as faixas de "Tribute".

Ilustração de Raphael Egel
Ilustração de Raphael Egel - Raphael Egel

Algumas músicas chegam a sete minutos de duração. O projeto, segundo Kastrup, vai na contramão da tendência do mercado fonográfico atual influenciada por algoritmos, com imposição de regras de minutagem que levam muitos produtores a não ultrapassar três minutos por faixa, com receio de perder ouvintes.

Os títulos das músicas do álbum fazem referência às canções de Sabina, o que segundo Kastrup ajudará a pesquisa de quem quiser se aprofundar na obra da curandeira. Mas os pontos de contato param por aí: a curandeira cantava em sua língua sem acompanhamento de instrumentos, enquanto o trabalho da dupla brasileira é predominantemente instrumental e só em algumas passagens evocativo de melodias tribais.

A primeira faixa, "Rising Sun Soso" cria uma atmosfera oriental com clarinete, monocórdio (instrumento antigo, da Grécia) e solfejo na voz de Milli Moonstone, cujas repetições de sílabas "sososo soso" emprestadas de Sabina fazem lembrar um mantra. É a única faixa com som vocal.

"Honguitos Chjon Nka" ("honguitos’ quer dizer funguinhos em espanhol) emprega violão e flauta, acompanhados por Kastrup tocando timbila, instrumento de teclas de madeira percutido com baquetas por membros da etnia chope de Moçambique. Melodia simples, luminosa, lembra a singeleza de alguns hinos do Daime.

"Papapai Mazateco", que a ouvidos leigos pode soar vagamente indígena e mexicana, nasceu de uma improvisação percussiva, incluindo flauta e flautim. "Nombre de Planta" inclui alguns segundos de fala de Sabina, segundo Kastrup para garantir a presença da homenageada no álbum.

"Sabina Nana Santo" comparece duas vezes, a primeira com sonoridade quase sacra com o uso de orquestra. E também fecha o álbum numa versão com rabeca e sanfona, tocados respectivamente por Rodrigo Bis e Eleandro Rocha. Solene, quase um lamento.

Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina
Cogumelos da espécie Psilocybe cubensis, que contém a substância psicodélica psilocibina - (Divulgação)

Maria Sabina repetia várias vezes no original "Santo, Santo, Santo", migrando do idioma mazateco para o espanhol. "No meu entender isso mostra claramente a influência e presença de um catolicismo popular mexicano na construção de uma visão de mundo religiosa específica dos rituais que ela desenvolvia com os cogumelos", explica o antropólogo.

"Psilocibina Ji Ñai Na", assim como "Nombre de Planta", tem uma pegada mais jazzista, com improviso de piano e saxofone. O pianista foi Tiquinho Santos, engenheiro de som que mixou o álbum no MidStudio em Bom Jardim (RJ).

Obras instrumentais longas com mais de sete minutos de duração e enaltecendo uma anciã como Maria Sabina são características que, alertam os autores, contrariam muito o que se vê em termos quantitativos na produção musical atual.

"Trata-se de um projeto musical conceitual e experimental, despreocupado com as metas de streaming", explica Kastrup. "Nosso foco com o tributo é atingirmos ouvidos e corações interessados em música tradicional e no universo da expansão da consciência."

Kastrup é irmão de Stevens Kastrup Rehen, neurocientista com estudos na área psicodélica que foi um dos fundadores da empresa Scirama. Quando soube que a companhia iria patrocinar ensaios clínicos com psilocibina, princípio ativo dos cogumelos "mágicos", Lucas deu a ideia de uma trilha sonora para acompanhar as sessões sob efeito da substância alteradora da percepção.

A proposta foi aceita e resultou na encomenda empresarial. As músicas do álbum estão sendo cadastradas como de autoria de Maria Sabina. O objetivo principal é reconhecer o valor da ancestralidade e a seu modo contribuir para romper a hierarquização que privilegiou o Ocidente em detrimento das tradições dos povos originários, diz Kastrup.

"Uma releitura da obra musical de Maria Sabina, produzida no Brasil em pleno 2024, no intuito de ajudar a compor o setting [ambientação] de sessões de psicoterapia com uso de psilocibina, faz parte de um movimento mais amplo de reparação a povos originários como os mazatecas."

O álbum inaugura o selo Música Ritual, criado por Kastrup. Ele tem outros cinco em pós-produção para compor o catálogo inicial, a maioria com vozes de mestras e mestres tradicionais do Maranhão, captadas em seus estudos antropológicos na Baixada Maranhense.

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