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'Não vi nenhuma luz', diz Salman Rushdie após levar 15 facadas e quase morrer

Em novo livro, autor relembra ataque que sofreu em 2022 e analisa novas ameaças à liberdade de expressão

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São Paulo

Os radicais religiosos que odeiam Salman Rushdie podem ir tirando o cavalinho da chuva.

Não há nada do lado de lá. Enquanto recebia 15 facadas de um fanático, em agosto de 2022, o autor não viu luz no fim do túnel ou coros celestiais. Tampouco o Diabo pronto para puni-lo por uma vida inteira de ateísmo. O escritor encarou a morte de perto e saiu tão descrente quanto antes. Enquanto sentia que estava desaparecendo, pensava em duas coisas: uma, mais fútil, era seu terno de grife arruinado; outra, claro, era o forte desejo de viver.

O escritor Salman Rushdie, que lança o livro 'Faca', em Nova York
O escritor Salman Rushdie, que lança o livro 'Faca', em Nova York - Clement Pascal/The New York Times

O ataque, cometido por Hadi Matar, um jovem de 24 anos, foi a concretização de uma ameaça que parecia ter desaparecido. Em 1989, o então líder religioso do Irã, o aiatolá Khomeini, sentenciou Rushdie à morte pela publicação do livro "Os Versos Satânicos", considerado blasfemo. O autor passou anos escondido, mas, no dia em que foi esfaqueado, já levava uma vida normal havia duas décadas.

Rushdie, um símbolo da luta pela liberdade de expressão diante do radicalismo religioso, viveu para contar. Em "Faca - Reflexões sobre um Atentado", ele relembra o ataque que o deixou sem a visão de um olho e com menor mobilidade em uma das mãos. Ao mesmo tempo em que narra o crime de ódio do qual foi vítima, o livro também é um ensaio sobre o amor —encarnado na mulher e nos filhos que estiveram ao seu lado durante a recuperação.

Agora, Rushdie se prepara para encontrar seu agressor, em um julgamento que deve acontecer no segundo semestre. E está pronto, garante. Em entrevista exclusiva, ele conta como foi chegar tão perto da morte, discute novas ameaças à liberdade de expressão e explica por que não quer mais falar de religião —mas fala.

O sr. ficou se viu diante da morte e, pelo visto, voltou com o ateísmo intacto. Porque nada aconteceu! Estar perto da morte não me fez questionar meu ateísmo. Não vi anjos, nenhum coro, nenhuma luz. Não vi os portões do inferno nem os do paraíso. Eu era só uma pessoa no chão, sangrando.

Alguns religiosos acreditam que os ateus vão renunciar à sua descrença em momentos como esse. Sem chances.

A sua geração de intelectuais teve ateus militantes, como Christopher Hitchens. Vocês conseguiram algo com esse ateísmo ou a religião venceu? Não queria conquistar nada com o meu ateísmo. Sempre foi algo pessoal. Fui criado em uma família secular. Meu pai tinha um enorme interesse na religião, era uma espécie de intelectual dessa área, mas não tinha nenhuma crença. Lembro quando ele estava à beira da morte. Meu pai nunca apelou a nenhum ser divino. Mesmo no final de tudo, ele não mudou.

Foi a revolta dos religiosos que levou o sr. a ser primeiro sentenciado à morte e, depois, a sofrer o atentado. No fim do livro, o sr. diz que não quer mais falar sobre religião. Por quê? Claro que, em certo sentido, preciso falar desse assunto, porque um fanático religioso me fez escrever esse livro. Mas sinto que já fiz a minha parte. Escrevi sobre isso. Religião não é tudo. Quero pensar em outras coisas.

Na época de "Versos Satânicos", o Islã radicalizado era visto como a principal ameaça à liberdade de expressão. Hoje, vemos atos de censura vindos de políticos e grupos cristãos. A cristandade hoje é uma ameaça maior do que naquela época? Nos Estados Unidos, com certeza, com o crescimento dos evangélicos, o que é um grande elemento do trumpismo. E é bizarro, porque Trump mesmo não sabe nada de religião e posa como o mais espiritualizado do mundo.

Foram os cristãos que influenciaram a queda do precedente do caso Roe v. Wade, pela Suprema Corte, suspendendo o direito ao aborto no país. Há uma estranha aliança entre o cristianismo radical e os supremacistas brancos. É um cristianismo para os brancos. Afinal, como todos sabem, Jesus Cristo era branco como a neve! [risos]

O debate sobre a liberdade de expressão mudou muito desde "Versos Satânicos"? Piorou muito. A direita continua fazendo o que sempre fez, ou seja, restringir o que pode ser dito. Aqui nos Estados Unidos há toda uma pressão para vetar certos livros ou autores em bibliotecas.

Mas agora há uma pressão [por censura] vinda também da esquerda. Há uma geração que acredita que certos tipos de discurso, se forem danosos, devem ser restringidos.

Fica mais difícil defender a liberdade de expressão quando os ataques vêm de todos os lados. E, para a esquerda, fica mais difícil lutar contra a censura a livros na Flórida enquanto pede o silenciamento de vozes que desaprova.

A palavra liberdade tem sido bastante mobilizada pela direita radical ao redor do mundo. Que questões isso traz? Uma consequência da apropriação dessa palavra pela direita é que a esquerda parece tê-la abandonado e, com isso, deixou de ter um discurso sobre a liberdade.

No lugar disso, a esquerda tem um discurso sobre limites. E sim, há coisas que não devemos dizer, linguagem que não devemos usar, pessoas que não devemos criticar por serem vulneráveis. A esquerda adotou uma atitude protecionista que levou à restrições [do discurso]. E isso abriu espaço para que a direita capturasse a ideia de liberdade.

A luta pela liberdade não é da direita. Ao redor do mundo, a direita costuma ser inimiga da luta pela liberdade. Por isso, é estranhíssimo essa inversão retórica esteja acontecendo. Na boca da direita, liberdade não significa liberdade. Significa liberdade para o capitalismo sem limites e para os brancos. É como um jargão racista.

No livro, o sr. guarda mostra um ressentimento pela forma como a imprensa o retratou ao longo dos anos —algumas vezes como fútil ou arroz de festa. Nunca sentiu a tentação de pedir a censura dessas vozes? Nunca. O mundo está cheio de coisas que não gosto. No começo, logo após os ataques a "Versos Satânicos", fiquei chateado porque vozes ocidentais foram muito críticas e me culparam pelo que estava acontecendo. Acusaram-me de tudo, diziam que eu tinha feito aquilo para ganhar dinheiro e fama. Foi doloroso. Mas, com o tempo, esse tipo de retórica deixou de existir.

Os ataques que sofreu impactaram a recepção dos seus livros? Algum dia o sr. espera ser lido sem o peso desse passado? Esse dia já quase chegou. Os comentários sobre meus últimos quatro livros não tinham referências aos ataques. Eu tinha chegado ao ponto em que podia lançar algo novo e só falar dos romances como ficção e não como mensagens de um escritor atacado.

Mas temo que esse ataque de agora vá trazer tudo de volta. E tenho medo de que, ao lançar este livro novo, eu esteja piorando a situação. Mas não tinha escolha a não ser escrevê-lo.

No livro, o sr. imagina um encontro com o homem que lhe esfaqueou. E, nessa cena, o sr. adota uma postura socrática, fazendo perguntas ao agressor para expor a incoerência do fanatismo dele. Depois de tudo o que o sr. passou, ainda acredita mesmo que a razão é uma arma contra os fanáticos? Não. Parto do princípio que esse diálogo hipotético seria um fracasso, porque ele não está disposto a refletir sobre seus próprios atos. Não parece ser alguém muito profundo.

Tudo indica que o agressor não sabia quase nada sobre mim e que ele não tinha antecedentes criminais. Era só garoto de New Jersey. E sair dessa posição para virar um assassino é um grande passo. Especialmente você não sabe nada sobre quem decide matar.

Quis me imaginar dentro da cabeça dele. Nunca achei que pudesse influenciá-lo, queria tentar entender o que permitiu a ele conceber tal crime.

Mas acho que não é possível argumentar com um fanático. É preciso derrotá-lo. Sempre digo que os mais prejudicados pelo fanatismo são os próprios muçulmanos. Os afegãos são quem mais sofre com o Talibã, assim como os iranianos são os mais prejudicados pelos aiatolás. Essa é uma luta ao lado do Islã, mas também dentro dele.

No fim das contas, o sr. vai ter que encarar o autor do atentado cara a cara no tribunal? Está pronto para isso? O julgamento vai ser entre setembro e outubro, e terei que testemunhar. Em pelo menos um dia, estarei na corte junto com meu agressor. Mas isso não me incomoda. Ele que deveria se incomodar de ter minha presença no tribunal.

Faca - Reflexões sobre um Atentado

  • Preço R$ 69,90 (impresso) e R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Salman Rushdie
  • Editora Companhia das Letras (232 págs.)
  • Tradução Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira
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