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O que a tragédia de um navio britânico revela sobre como impérios moldam a história

'Os Náufragos do Wager', do autor de 'Assassinos da Lua das Flores', é uma reconstituição brutal das grandes navegações

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pintura de navio antigo inclinado pela força das ondas brutais do mar contra céu cor de chumbo

Pintura de Cyriac Allard que estampa a capa do livro ‘Os Náufragos do Wager’ Divulgação

São Paulo

Muitos homens morreram na água. Outros definharam com escorbuto, sentindo seus ossos sucumbirem a uma doença até ali obscura e misteriosa. Vários desmontaram de fome, após comerem de algas a ratazanas, de carne podre até seus próprios sapatos. Poucos sobraram para contar a história.

Mas qual história? "De repente, depois dessa guerra contra os elementos, eles tiveram de travar uma guerra pela verdade", diz o americano David Grann, que relatou esses eventos em "Os Náufragos do Wager". "Porque se esses homens não contassem uma história convincente, poderiam ser enforcados por seus crimes."

Essa é uma história verdadeira —e uma história sobre como a verdade é criada. Pode parecer que esse caso ocorrido há quase 300 anos, sobre os tripulantes de um navio britânico que se destroça e deixa seus marinheiros ilhados e famélicos na costa do Chile, não tem nada a ver conosco.

Mas com atenção se notam lições valiosas de filosofia política —afinal, o que é a lealdade a uma bandeira ou a um capitão numa situação excepcional como um naufrágio?— e de como se moldam os livros e enciclopédias oficiais. É como se testemunhássemos a quente aquele chavão que diz que "a história é escrita pelos vencedores".

"Todos contamos nossas histórias editando e esculpindo a narrativa para que sejamos os heróis, e foi o que fizeram ali", afirma Grann, em entrevista por vídeo. "Não é que mentiam na cara dura, mas direcionavam e destacavam certas partes para que ficassem melhor na fita."

Antes de continuar, é preciso mais contexto. O Wager que intitula o livro era uma embarcação de guerra enviada pela Coroa do Reino Unido para pilhar a frota espanhola, sua principal adversária naquele embate imperial do século 18.

Só que a viagem era extremamente arriscada, envolvendo contornar o cabo Horn, no ponto mais ao sul da América, e surpreender o navio inimigo no Pacífico. A passagem que o barco precisava fazer era tão violenta que se ilustra por um ditado dos marinheiros da época: "abaixo de 40 graus de latitude, não há lei; abaixo de 50 graus, não há Deus".

Como o título do livro já adianta, a missão fracassa, e uma fração de seus tripulantes consegue nadar até uma ilha, onde começa uma espécie de "O Senhor das Moscas", versão com adultos.

Ainda que a sua obra não seja de ficção, é o próprio Grann quem cita a inspiração no clássico de William Golding —e conta que ele mesmo navegou para a ilha Wager, como o local do acidente passou a ser conhecido depois, ouvindo um audiolivro de "Moby Dick", de Herman Melville, outra de suas grandes influências narrativas.

O Wager não se deu muito melhor que o trágico capitão Ahab: a embarcação saiu da Inglaterra em 1740 com 250 marujos e duas dúzias de sobreviventes voltaram para lá, anos depois e completamente estropiados —entre eles um adolescente que se tornaria avô do lorde Byron, um dos pais da poesia britânica.

Os detalhes do périplo são impressionantes demais para resumir aqui, mas os retornados ainda precisaram encarar a rigidez de uma corte marcial linha dura no seu país de origem. E é aí que aquelas histórias individuais se transfiguram em história da nação, como diz Grann.

"Um oficial diz que ‘teve que proceder a atos extremos’, quando ele simplesmente deu um tiro na cabeça do outro", conta o autor. "E o Império Britânico então decide, de forma similar, moldar ali sua própria história alternativa, seu conto mítico dos mares."

Assim, crimes são varridos para baixo do tapete, vergonhas de oficiais são abafadas e, diante de nossos olhos, se realça uma narrativa heroica que simplesmente não estava lá —e que perdurou por séculos no imaginário britânico.

"E eu voltava para casa depois da minha pesquisa e também havia batalhas sobre a nossa história, sobre quais livros seriam ensinados nas escolas", diz o autor, que trabalhou neste livro, frequente entre as listas dos melhores de 2023, durante o fim do governo Donald Trump e os primeiros anos de Joe Biden.

"Então senti que havia reverberações na modernidade e que podíamos aprender muito ali sobre a natureza humana, o imperialismo, os sistemas de classe."

No meio da entrevista, o jornalista da revista New Yorker se recorda de algo que aconteceu com outra obra sua —uma que ficou bem mais conhecida por mérito de Martin Scorsese, Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone.

"Eu lembro que havia pessoas com medo de ensinar na escola ‘Assassinos da Lua das Flores’, meu livro anterior, porque ele lidava com pecados mais sombrios do nosso passado."

Grann parece ter se especializado, e aí se inclua também seu amazônico "Z - A Cidade Perdida", em tramas que contam os processos de colonização como eles de fato aconteceram —não como foram escritos para a posteridade.

"Assassinos da Lua das Flores" deixava claro o papel de brancos americanos na expropriação e assassinato de quase toda uma comunidade indígena enriquecida com o petróleo descoberto por acidente na região.

E "Os Náufragos do Wager" mostra como as grandes navegações muitas vezes foram realizadas por homens perdidos, violentos, cujos valores eram negociáveis. E é didático ao revelar como as conquistas inscritas nos livros não raro foram ocasionais, frutos de sorte —mas seu registro nas calendas, esse sim, foi muito proposital. E o mesmo vale para os esquecimentos.

"Às vezes as histórias não podem ser contadas porque não houve registros ou porque eles foram perdidos", diz um autor que trabalhou mais tempo pesquisando sobre este caso do que seus personagens levaram vivendo a própria história na ilha deserta. "Mas às vezes você não consegue contar uma história por razões sistemáticas."

O mais chamativo exemplo é o de John Duck, um homem negro livre que integrava a tripulação do Wager. Desde o começo do livro, Grann atesta que Duck era quem tinha mais a arriscar na viagem —afinal, se aportassem sem querer num país escravocrata, ele sofria um sério risco de ser sequestrado e vendido. Não se sabe que fim ele teve.

"Esse silêncio, em si, conta uma história", aponta Grann. "Antes, na minha carreira como escritor, eu sentia que se não tinha material suficiente para contar algo, simplesmente não escrevia. Mas nesse livro eu passei a notar que, se não puder contar uma história, às vezes, você tem que ressaltar o silêncio."

"Conforme fiquei mais velho", afirma, "passei a ficar bem mais assombrado por aquelas histórias que não podem ser contadas."

Os Náufragos do Wager

  • Preço R$ 89,90 (408 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria David Grann
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Pedro Maia Soares
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