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Matheus Rocha

Clipe de Anitta sobre candomblé é corajoso no Brasil da intolerância

Preconceito torna algo tão trivial quanto manifestar a própria religiosidade estopim para ataques e crise de imagem

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Matheus Rocha

Escreve sobre cultura na Ilustrada

O que era para ter sido só mais um clipe de Anitta virou sintoma do racismo e da intolerância que vicejam no Brasil. Na segunda-feira (13), as redes sociais vieram abaixo depois que a popstar brasileira divulgou imagens da gravação do vídeo de "Aceita", sua nova música.

Desta vez, porém, a celeuma não se deu por acusações de erotizar corpos negros, como ocorreu quando ela lançou o clipe da música "Funk Rave", no ano passado. A bem da verdade, a polêmica da vez não devia nem ser considerada uma polêmica.

Anitta grava clipe de 'Aceita' em terreiro de candomblé no Rio de Janeiro
Anitta grava clipe de 'Aceita' em terreiro de candomblé no Rio de Janeiro - Ricardo Brunini/Divulgação

A cantora decidiu fazer do lançamento uma ode à liberdade religiosa, com cenas que retratam ritos do candomblé, religião de matriz africana da qual ela é devota. Nas imagens que compartilhou na internet, a cantora aparece ao lado do pai de santo Sérgio Pina, que tem um terreiro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Vemos também a cantora tomar banho de ervas e trajar vestimentas que remetem a Omolu, o orixá da doença e da cura. No final de 2022, ela ficou cinco meses afastada do trabalho com suspeita de câncer. De certa forma, a homenagem à divindade é uma maneira de celebrar a recuperação após a enfermidade.

São registros intimistas que mostram um lado da cantora com o qual os fãs têm pouco contato. Parte deles, porém, parece ter rejeitado a ideia —poucas horas após a publicação, Anitta perdeu 200 mil seguidores nas redes.

No Brasil da intolerância religiosa, algo tão trivial quanto manifestar a própria crença virou estopim para uma crise de imagem.

Há quem diga não ser possível atribuir a causa da debandada ao preconceito. Essa é uma visão não apenas ingênua, mas desconectada da realidade de um país que, por influência da escravidão, demonizou a religiosidade de pessoas negras.

Segundo o "Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe", divulgado no ano passado, o alvo preferencial da intolerância são as religiões de matriz africana.

Em 2021, foram registrados 244 casos, um aumento de 183% em relação a 2020, quando foram notificadas 86 ocorrências. A pesquisa foi feita pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e pelo Observatório das Liberdades Religiosas com apoio da Unesco.

Alguns dos episódios de violência ganharam espaço nas páginas deste jornal. Em 2021, ao menos três terreiros de umbanda foram atacados num período de 90 dias em Sumaré, a 120 km de São Paulo.

O primeiro desses ataques aconteceu na madrugada de 11 de setembro, quando o Terreiro Oxalá e Iemanjá, no Jardim Bela Vista, foi invadido por criminosos. Após arrombarem o portão, eles vandalizaram o local, quebraram os objetos utilizados nos rituais religiosos e rasgaram as roupas de santo.

A violência, porém, não é restrita a São Paulo. No Rio de Janeiro, por exemplo, os terreiros têm sido depredados por traficantes evangélicos, num processo que especialistas em segurança pública chamam de "narcopentecostalismo".

Em 2019, oito traficantes do Terceiro Comando Puro foram presos por ataques em terreiros de candomblé em Duque de Caxias. Segundo a polícia, a facção responsável pela agressão se denominava Bonde de Jesus e era comandada por um pastor.

Diante desse cenário, professar publicamente fé nos orixás deixa de ser algo banal. É, antes de tudo, um exercício de coragem num país onde a tolerância religiosa está inscrita na Constituição, mas não nos costumes. Sob essa ótica, Anitta foi corajosa.

"Aceita" está longe de ser a melhor música da artista. Na verdade, é uma canção que traz um certo déjà vu. Afinal, já ouvimos à exaustão ela cantar sobre ter saído da favela e conquistado o sucesso. A canção poderia, inclusive, ter passado quase despercebida, como foi o caso de alguns de seus lançamentos recentes.

No entanto, reside no clipe a força de "Aceita". Tanto pela temática quanto pelo recrudescimento da intolerância, a produção já nasceu como uma das mais importantes da videografia de Anitta.

Ao longo da carreira, ela encampou batalhas contra o moralismo com clipes e apresentações cheias de sensualidade. Assumiu o próprio desejo e deu de ombros para a caretice.

Agora, a cantora parece interessada em ocupar um novo front. Se parte do Brasil esperava dela uma religiosidade discreta e silenciosa, quase envergonhada, ela escolheu o caminho inverso. Afirmou sua fé do mesmo modo como faz com o próprio desejo —de forma ruidosa e despudorada.

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