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Na moda, Rússia acena para Sul Global e tenta ignorar guerra e domínio da Europa

Fuga de grifes ocidentais e sanções comerciais fizeram com que país de Putin tivesse que procurar novos mercados, na marra

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Modelos esperam no backstage antes do desfile da designer russa Alena Akhmadullina durante o BRICS+ Fashion Summit, em Moscou Evgenia Novozhenin/Reuters

Moscou

Na praça Vermelha, em Moscou, do lado oposto ao mausoléu de Lênin, fica a GUM, abreviação de um nome que significa algo como principal loja universal. É uma loja de departamentos estatizada depois da Revolução Russa e posteriormente privatizada depois da perestroika, a reestruturação econômica do país
nos últimos anos da União Soviética.

Por lá, Dior, Chanel, Rolex, Montblanc, Cartier e Hermès seguem com suas lojas, mas de portas fechadas ou com prateleiras vazias. Nas entradas das que estão inoperantes, há um aviso colado no vidro, em russo, inglês e chinês. "Prezado visitante, a loja está fechada devido a problemas técnicos. Pedimos desculpas pelo inconveniente temporário." A placa, no entanto, não explica quais são os problemas.

Há dois anos, desde que o governo de Vladimir Putin, reeleito pela quinta vez no mês passado com quase 88% dos votos, começou uma guerra com a Ucrânia, grandes marcas de moda internacionais anunciaram o fim das suas operações no país como forma de protesto.

Mulher tira selfie durante o BRICS+ Fashion Summit em Moscou, na Rússia, em dezembro de 2023 - Maxim Shemetov/Reuters

De acordo com Konstantin Andrikopoulos, diretor da Bosco di Ciliegi, empresa que detém uma rede de vestuário e que também é a maior acionista da GUM, 21% das marcas estrangeiras deixaram o país depois de fevereiro de 2022, "apesar de terem sido autorizadas a operar", ou ao menos em suas palavras.

Logo após o início da guerra, em março de 2022, a Balenciaga apresentou na Semana de Moda de Paris um desfile-protesto contra a invasão russa da Ucrânia. Demna Gvasalia, diretor criativo da marca, distribuiu camisas com cores do país invadido, em apresentação que simulou uma tempestade de neve. Nascido na União Soviética, Gvasalia se radicou na Alemanha.

Os lojistas que revendem grifes estrangeiras na GUM estão há dois anos pagando aluguel para garantir seu espaço, mas sem qualquer perspectiva de vislumbrar o fim da guerra.

"Eu chamaria isso de um otimismo infundado. Não vejo, no curto prazo, o retorno das marcas. O contexto atual não deixa margem para otimismo", afirma Andrikopoulos.

Num espaço de tempo de pouco mais de três meses, entre novembro e março, dois grandes eventos de moda tomaram a capital russa —o Brics+ Fashion Summit e a Semana de Moda de Moscou. Os convidados, em vez de virem de Londres ou Paris, vinham em grande parte de outras partes do mundo, sobretudo da China, da Índia e do chamado sul global, isto é, de países periféricos.

Depois do início da guerra com a Ucrânia, que por aqui é chamada de operação militar especial, a Rússia passou a olhar mais para o mercado interno, ao passo em que começou a dar mais acenos para economias fora do eixo Estados Unidos-Europa. Houve até pequenos gracejos para um país distante e exótico chamado Brasil.

Quando a estilista brasileira Marina Dalgalarrondo recebeu o convite para apresentar o seu trabalho na Semana de Moda de Moscou, sua primeira reação foi de susto e apreensão. "A gente tem uma visão muito específica sobre o que está acontecendo e nos preocupamos", diz.

Dalgalarrondo, no entanto, conta que passou a entender que a questão era mais complexa. "Como eu, uma estilista brasileira com tão poucas oportunidades, poderia fazer um boicote?", questiona. "E se fosse um convite para a Semana de Moda de Nova York, você problematizaria, já que os Estados Unidos também têm uma postura bélica? E não, eu não problematizaria", ela mesma responde.

A estilista brasileira então desembarcou em solo moscovita para exibir na passarela do histórico salão Manege, ao lado do Kremlin, as roupas da sua marca, a Ão, junto de designers de países como Turquia, Etiópia, Indonésia e África do Sul.

As participações começaram a ser costuradas meses antes, em dezembro passado, quando a capital russa sediou o Brics+ Fashion Summit. Ambos os eventos foram organizados pela Fundação Cultural de Moda e Design, o fundo para a moda alimentado pelo governo russo.

Se a moda sempre foi palco de manifestações políticas, como no desfile da Balenciaga logo após o início da guerra, na Moscou de hoje isso parece não acontecer. O conflito passa ao largo das passarelas. Também é pouco ou nada comentado nos corredores da Semana de Moda.

A influência da guerra é indireta. Uma marca de luxo russa, por exemplo, deixou de desfilar porque sua coleção era inspirada em uma região do país que está sendo mais afetada pelo confronto com os ucranianos. Orientada pela organização de que não pegava bem apresentar um desfile com esse tema e sem tempo hábil para idealizar outro conjunto de roupas, a grife preferiu não se apresentar.

Os estilistas do sul global também pouco falam sobre o conflito e dizem preferir enxergar o evento por um outro prisma —como uma oportunidade de exibir suas peças internacionalmente. "É como se eu tivesse feito um gol, por isso celebro como um atleta", afirma Andile Thamsanqa, da Dope Store, da África do Sul.
Inspirada no esporte e em fazer "roupas para um campeão", a marca foi uma das mais aplaudidas durante o evento. Thamsanqa diz que estar em Moscou representou uma chance de fazer negócios.

"Depois da pandemia de Covid, nossa moral caiu, e estar aqui e ver como as pessoas reagem ao que criamos me dá muita confiança. Mais pessoas, de lugares diferentes, entendem o que estou tentando fazer e qual é a minha mensagem. Isso é o mais importante."

Marina Dalgalarrondo, da grife brasileira Ão, faz coro. "O mais rico dessa experiência é trocar com esses estilistas de países emergentes, que têm as mesmas questões que as minhas sobre como produzir, a quantidade que produz, como vender, como exportar", diz a designer.

Encontrar parceiros de fora do Ocidente tem sido a estratégia adotada pela Rússia para manter a economia aquecida diante dos embargos. "A União Europeia respondia por metade do comércio russo e todo o resto era secundário [antes da guerra]. Agora a situação é diferente", diz Vasily Astrov, economista especialista em Rússia do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais de Viena, o WIIW, na sigla em alemão.

Para não se isolar, diz ele, os russos se voltaram para a Ásia e para periféricos —e não só na moda. Segundo a instituição, o setor de petróleo e gás natural, que representava quase 32% da produção industrial russa em julho do ano passado, conseguiu encontrar novos mercados consumidores. Índia e China absorveram cerca de metade do petróleo russo no mesmo período.

Mas são sobretudo os gastos com a indústria bélica que têm mantido a robustez do PIB, diz Astrov. De agosto de 2022 a agosto passado, a indústria russa de computadores, produtos eletrônicos e ópticos cresceu 34,6%. A produção de veículos de transporte aumentou 29,4%, e a de equipamentos elétricos, 23,2%.

Em comum, são todos setores com considerável parcela de sua produção voltada para o setor militar.
Na moda, porém, a situação é mais delicada. A indústria têxtil teve uma queda de 1,5% no mesmo período.

Prestes a completar 25 anos de existência, a grife russa Alena Akhmadullina afirma que tinha consumidores espalhados por todo o mundo, mas, diante dos embargos ocidentais, a marca passou a ter como principal alvo o mercado local.

Só que isso representou outro problema, já que o público-alvo também mudou. Desde que começou a guerra, houve uma fuga de bilionários russos para Dubai. Na cidade dos Emirados Árabes Unidos, que fica a uma distância de seis horas de avião de Moscou, há lojas de luxo aos montes e nenhuma sanção.

Por isso, a saída de grifes como Chanel e Dior da Rússia não significa necessariamente que as marcas de luxo russas ocuparam um vácuo deixado pelas marcas ocidentais. Além disso, como diz Konstantin Andrikopoulos, diretor de desenvolvimento da Bosco di Ciliegi, as grifes de luxo não podem ser facilmente substituídas. "É uma questão de construir uma marca ao longo de décadas."

Segundo ele, um quinto dos consumidores desse mercado passaram a comprar marcas médias e de luxo presentes na Rússia. "O restante viaja para o exterior para comprar suas marcas favoritas", diz Andrikopoulos.

O diretor-criativo da Alena, Andrey Burmatikov, afirma que a marca russa cresceu internamente, mas acrescenta que o cenário não é o ideal. Para ele, a competição com as grandes grifes "movimenta o mercado e os negócios". "Nós esperamos que elas voltem."

A Brics+ Fashion Summit e a Semana de Moda de Moscou são reflexos desse contexto de boicote. Antes de 2022, havia em Moscou a Mercedes-Benz Fashion Week Russia. Veio a guerra e levou embora consigo o patrocínio da fabricante alemã.

A Rússia nunca teve uma grande relevância global na moda, afirma João Braga, professor de história da moda. "Teve alguma coisa depois da Revolução Bolchevique, em 1917, especialmente com o trabalho da artista Varvara Stepanova", ele afirma.

Stepanova, uma das principais expoentes do construtivismo russo, trabalhou com estamparia. Grande parte de seu trabalho tinha como objetivo exaltar os estilos de vida e produção da União Soviética —ou seja, suas estampas e peças de roupas habitam um mundo diferente das maisons de alta-costura francesas.

Em meados dos anos 1980, Raisa Gorbacheva, a última primeira-dama soviética, se tornou um ícone fashion e um dos rostos da abertura da União Soviética ao Ocidente. Ela chegou a ir às semanas de moda na Europa e ajudou a promover o estilista russo Slava Zaitsev. Ele assinava vestidos que Raisa usava em visitas oficiais que ela e seu marido faziam ao interior da Rússia e ao exterior.

Zaitsev vestiu celebridades russas, atletas e bailarinas. Chegou a ser chamado pela imprensa ocidental de "o Dior vermelho". "Se você pega dicionários internacionais de moda, o nome do Slava está lá", diz Braga.

Mas depois o tempo foi passando, o auê da perestroika se dissipando e a economia russa, outrora famosa pela investidas em tecnologia de ponta, caminhou para uma crescente dependência macroeconômica em relação a commodities —situação semelhante a países sem um passado tão grandioso, como o Brasil.

A indústria da moda como a conhecemos hoje, diz o professor João Braga, nasce na Europa ocidental a partir de uma burguesia cada vez mais endinheirada que, em busca de prestígio, começa a copiar o jeito de se vestir da nobreza. Os nobres, ao perceberem, mudavam qualquer coisa de seu figurino para se diferenciar dos emergentes. Os burgueses copiavam de novo. É daí, então, que surge o conceito de tendência.

Em outras palavras, a indústria da moda é um fenômeno fruto do capitalismo liberal. Não é preciso ser historiador para saber que o século 20 não ofereceu à Rússia o terreno mais fértil para esse tipo de mercado. Quanto aos últimos anos, Vladimir Putin vem colocando o país numa rota cada vez mais anti-Ocidente.

Desse modo, desenvolver uma indústria fora das panelinhas dos circuitos europeus não é tarefa trivial.
Só que a China está logo ali e, além de ter 4.250 quilômetros de fronteira com a Rússia, tem o maior mercado consumidor de vestuário do mundo, segundo a plataforma Fashion United. "Mesmo dentro de um sistema socialista ou qualquer outro nome que se queira dar, o dinheiro fala mais alto", afirma Braga, o professor de moda. "A gente sabe disso."

Os jornalistas viajaram a convite da Fundação Cultural de Moda e Design russa

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