Vedetes e drag queens simbolizam passado e presente em musical

'Daqui Ninguém Me Tira' aborda temas como especulação imobiliária, preservação da memória e conflitos ideológicos

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São Paulo

A primeira cena de "Daqui Ninguém Me Tira", em cartaz até 28 de junho em São Paulo, mostra que a sátira social, uma das principais características do teatro de revista, está fortemente presente na montagem do espetáculo, uma comédia musical crítica, mas que também desempenha o papel de homenagear antigas vedetes brasileiras.

Na cena de abertura, Herculano —Giovani Tozi revezando com Anderson Müller—, o funcionário de uma grande incorporadora, tenta justificar a fúria demolidora do mercado imobiliário falando sobre as iniciativas "simpáticas" do empreendimento para o qual trabalha. Entre elas, um painel com fotos do passado, a presença de gôndolas em um rio canalizado e espaços "instagramáveis" nas torres prestes a serem construídas.

A imagem colorida mostra uma artista com o cabelo vermelho e uma rosa vermelha no ombro
A drag queen Alexia Twister em cena de 'Ninguém Me Tira' - Priscila Prade/Divulgação

Do outro lado do conflito proposto pelo texto dramatúrgico de Noemi Marinho está a drag queen Velvet —Alexia Twister—, uma artista apegada ao patrimônio cultural que preserva em um galpão teatral: vestidos, sandálias, plumas e paetês de vedetes do passado.

O drama de Velvet é não ser compreendida em seu desejo de manter a memória de artistas como Virgínia Lane, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha e Marília Pêra –um dos vestidos dourados do figurino exposto no palco foi usado pela atriz no musical "Vítor ou Vitória" (2001). Criado por João Santaella, o vestido faz parte do acervo do figurinista Fábio Namatame.

Velvet e Herculano vivem momentos de embates, mas também de afeto e compreensão, em um respiro no cenário polarizado e agressivo no qual o Brasil está mergulhado há alguns anos. Na peça, os dois protagonistas têm sonhos e objetivos diferentes, mas conseguem compreender um ao outro aqui e ali.

No entanto, não é exagero afirmar que as cenas são dominadas pela performance de Alexia Twister, uma drag queen experiente nos palcos paulistanos e conhecida pela série "Nasce uma Rainha" (Netflix).

Ela canta, dança, faz piada e um número com a plateia enquanto narra os dramas e conquistas de Velvet, comuns a outras drag queens, como a luta pela sobrevivência e os momentos de diva no palco. Estrela um show cheio de brilho enquanto a casa está caindo.

"É uma característica da drag fazer piada com a desgraça", diz.

A diretora Neyde Veneziano é especialista em teatro de revista e autora de cinco livros sobre o assunto. Em "Daqui Ninguém Me Tira", ela afirma que as drags são as herdeiras das vedetes.

A encenação é inspirada nos canteiros de obras de São Paulo e faz uma analogia entre a memória do teatro de revista e a arquitetura urbana (e suas histórias), modificada diariamente na metrópole.

Não falta inspiração da vida real para essa história: o conflito do Teatro Oficina com o Grupo Sílvio Santos em torno da área que será transformada em Parque do Bixiga; a demolição do Espaço Cênico Viga para dar lugar a um prédio em Pinheiros e o fechamento do Teatro Aliança Francesa, na Vila Buarque, região central de São Paulo.

Outros componentes da peça são as tensões geracionais e os questionamentos sobre o que é ou não politicamente correto hoje em dia.

O espetáculo foi idealizado pelo ator e produtor Giovani Tozi e coloca no palco uma pequena banda que toca marchinhas carnavalescas e deixa no público a vontade de dançar.

A imagem mostra dois artistas contracenando. Ela usa uma peruca loira e ele um capacete de operário
Alexia Twister e Anderson Müller no espetáculo - Priscila Prade/Divulgação

No projeto, ele quis reunir as veteranas Noemi Marinho e Neyde Veneziano, duas mulheres importantes na história do teatro brasileiro.

"Do encontro da herdeira espiritual das vedetes com o representante do mundo corporativo pode sair luz. Pode iluminar o que nem pressentíamos. Ele é funcionário, ela é dançarina, como na música do Chico", diz Noemi. "O meu encantamento pelos anos dourados, que desafortunadamente não vivi, sempre traz os 'antigamente' para a conversa. Muito cedo descobri que as coisas acabam".

Um detalhe sobre o processo da montagem traz um tom realista à comédia musical: o restaurante nos Jardins onde aconteceu a primeira reunião sobre a dramaturgia não existe mais. Foi demolido para dar lugar a um prédio, como tantos outros imóveis que fazem parte da história de moradores da capital.

"A atualidade do texto de Noemi Marinho nos leva a reflexões sobre os abusos que hoje ocorrem. Abusos com a natureza, abusos com mulheres, com casinhas e prédios antigos, abusos com nossa história teatral", afirma Neyde. "A ganância gera catástrofes e misérias".

Além de São Paulo, a peça "Daqui Ninguém Me Tira" é apresentada em dias alternados em cidades do interior de São Paulo.

Daqui Ninguém Me Tira

  • Quando Sextas-feiras, até 28 de junho, 19h.
  • Onde Teatro Sabesp Frei Caneca
  • Autoria Noemi Marinho
  • Elenco Alexia Twister e Giovani Tozi (em revezamento com Anderson Müller)
  • Direção Neyde Veneziano
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