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Antologia de Neil Gaiman é ótima porta de entrada com seleção feita por fãs

Livro permite acompanhar experimentação do autor com gêneros e estilos até forjar gradualmente o seu próprio

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Gabriel Trigueiro

Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Neil Gaiman: Histórias Selecionadas

  • Preço R$ 116,90 (656 págs.); R$ 83,90 (ebook)
  • Autoria Neil Gaiman
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Leonardo Alves, Augusto Calil, Edmundo Barreiros, Fábio Barreto e Renata Pettengill

"Neil Gaiman: Histórias Selecionadas" é uma antologia diferente: com exceção de "Macaco e a Dama", que entrou por escolha pessoal de Gaiman, os demais contos e fragmentos de romances não foram selecionados pelo autor e tampouco por seu editor, mas por fãs, em uma votação na internet.

Homem branco sentado com a cabeça apoiada na mão.
Autor Neil Gaiman, autor de obras como 'Coraline' e 'Mitologia Nórdica', em Los Angeles, em maio de 2019. - Rozette Rago/The New York Times

O material que integra a coletânea é uma excelente amostra de sua extensa obra, porque é panorâmica e representativa, e funciona como uma porta de entrada para sua ficção e o universo que o autor criou ao longo de décadas.

O maior motivo para mergulhar em mais de 600 páginas, no entanto, é o apelo universalista da ficção do autor britânico, traço apontado por Marlon James, outro autor de fantasia contemporâneo, no texto de apresentação.

Como James recorda, a Nobel de Literatura Toni Morrison uma vez afirmou que o russo Liev Tolstói não tinha como saber que estava escrevendo para uma menina negra em Ohio um século depois, mas, mesmo assim, ele teve importância decisiva para ela.

Gaiman também não tinha como saber que os mundos que criou seriam influência na estética do próprio James, à época uma criança negra na Jamaica. No entanto, aquele jovem britânico se conectava com seus sentimentos e angústias.

Essa habilidade, por si só, justifica a atenção que a mitologia do autor ganhou ao longo das últimas quatro décadas. Gaiman é, antes de qualquer coisa, um escritor-leitor. Embora possua uma voz única, é também um ficcionista em diálogo com os mestres que o antecederam.

Embora seja vocal quanto à sua admiração ao mestre do horror sobrenatural H.P. Lovecraft, é com a escrita do argentino Jorge Luis Borges que seu estilo mais se assemelha, de acordo com James. Gaiman, ao longo de sua carreira, e Borges, até o final de sua vida, sempre foram duas mentes livrescas, atentas à sátira e ao paródico.

Se em seu conto "There Are More Things" Borges imita Lovecraft, em "Neil Gaiman: Histórias Selecionadas" há também paródias do americano, mas todas, claro, com o senso de humor inconfundível de Gaiman.

Em "Um Estudo em Esmeralda", um de seus contos mais conhecidos, lemos um pastiche de Arthur Conan Doyle, com sua dupla de personagens mais famosa, só que inserida em uma ambientação de horror sobrenatural.

Já uma pista para compreendermos a visão de mundo de Gaiman é o conto "O Problema de Suzana", que a um só tempo homenageia C.S. Lewis e o confronta. Ali se aborda um aspecto de "As Crônicas de Nárnia", a obra mais famosa de Lewis, que o desagrada: todas as crianças vão para o Paraíso, exceto Susana, "porque gosta demais de batons, collants e convites para festas".

Gaiman critica a crueldade do moralismo cristão de Lewis e escreve um dos melhores contos da antologia. Como disse certa vez em uma entrevista: "Eu sou um dos filhos de C.S. Lewis. Posso até ser um filho mal-humorado e rebelde, mas ainda assim eu sou um de seus filhos".

O livro se organiza por ordem cronológica, um critério que cria um fluxo no qual acompanhamos o autor experimentar com gêneros e estilos até forjar o seu próprio —o que fica visível gradualmente, à medida que a leitura avança.

Em "As Noivas Proibidas", por exemplo, Neil Gaiman usa com originalidade e ironia os clichês e as convenções de gênero mais banais e reflete sobre a validade dos critérios que definem o que é a chamada "literatura séria" ou de "prestígio".

Gaiman pode ser lido como sucessor de autores como Shirley Jackson e Roald Dahl: alguém com o domínio da forma curta, mas que consegue a mistura peculiar de humor e melancolia contemplativa, especulação moral e aventura.

Para alguém que inventou mundos habitados por trolls, dragões, demônios e deuses vagabundos e caprichosos, é curioso pensar que seu maior truque de mágica foi criar uma base sólida de fãs apenas com o poder de contar bem histórias.

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