Descrição de chapéu
artes plásticas

Francis Bacon reduz o homem à crueza da carne em suas pinturas

Obras expostas no Masp traçam um retrato animalesco da brutalidade do sexo gay e da intimidade entre os homens

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O homem nu se debruça sobre a pia, os gestos um borrão, como sua própria pele deslavada, transparente, a carne feito fantasma. Seu corpo é a memória animalesca do corpo, um espectro quadrúpede, braços e pernas tombados em direção ao chão, num cenário que desvanece. Em volta, linhas finas delimitam o espaço, uma caixa cênica, artificial como o teatro, já com as cortinas que separam a ação entre dentro e fora do espetáculo. Ele se lava.

O quadro de Francis Bacon que abre a poderosa mostra do artista agora em cartaz no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, estabelece o cenário de toda essa angústia, sempre uma caixa, sempre uma alcova, um quarto isolado, testemunha da dor, do gozo, da carnificina. O retratado em seu "Man at a Washbasin", ou homem em um lavatório, tela dos anos 1950, expia a própria culpa.

"Man in Blue", óleo sobre tela de 1954
"Man in Blue", óleo sobre tela de 1954 - The Estate of Francis Bacon

Bacon repetiu essa estratégia ao longo de décadas, a figura no centro, o cenário ao mesmo tempo rígido e transparente ao redor. É uma camisa de força imaginária, a domesticidade castradora de interiores burgueses, ou interiores às vezes só esboçados, em contraste duro com a selvageria dentro deles, o homem, quase sempre o homem, como fera, ou homens como feras que se devoram.

Esse recorte da trajetória do britânico tem a nada sutil missão de direcionar o olhar para a raiz queer, ou gay mesmo, de seu trabalho, embora Bacon tenha sido mais do que um artista que retratou numa das vertentes de sua produção plástica o amor entre homens.

Em muitas ocasiões, estamos longe do amor, aliás, e mais perto de uma força que nos faz destruir uns aos outros, o sexo que se assemelha a um ringue de boxe, um espaço também cercado pelas quatro linhas de um quadrado.

São os lutadores e os banhistas, figuras recorrentes da pintura de linhagem homoerótica ao longo da história da arte, que se chocam no retrato desse homem que se lava, a rinha de briga ao redor e a redenção na água que purifica, talvez daí os tons frios, cadavéricos e escuros dessa tela.

O sexo se pronuncia só na nudez do rapaz, mas a pulsão de vida de um encontro carnal se esvai pelo ralo, da mesma forma que na tela ao lado, "Study of a Nude", ou estudo de um nu, outro homem despido se alonga para mergulhar no nada, um gesto de liberdade suicida.

Dez anos depois de fazer esses trabalhos, Bacon construiu uma estrutura semelhante noutra tela, a caixa transparente envolta em cortinas, mas com um homem vestido no centro da composição, vestido até demais. A figura de terno, o rosto irreconhecível, mais um fantasma lapidado no gestual de pinceladas rápidas e violentas, está sentada no balcão de um bar, sozinha, olhando para o nada.

É dos mais belos retratos da solidão, de tantos outros, que habitam a mostra desse artista mestre em arquitetar cenas em suspenso, quase fotogramas de um filme perdido.

Seus flagras sugerem o momento antes ou depois de uma explosão, a ansiedade do engravatado que antecede um encontro clandestino ou a vã tentativa do outro de esfregar da pele as marcas do sexo.

Bacon exerceu a sua sexualidade na contramão das normas da época, tendo feito grande parte de seus trabalhos num momento em que ser homossexual era crime no Reino Unido, o que talvez explique, seja em chave de denúncia, seja como forma de protesto, suas figuras quase sempre solitárias, réus confessos num tribunal insólito.

Mas eles gritam. E deixam ver os dentes, uns afiados como os das carrancas, figuras vampirescas, outros retos e alinhados formando a arcada dentária do homem comum.

Seus muitos retratados em plano mais fechado, composições derivadas da figura de pose estática, coberta em tecido brilhoso do papa Inocêncio 10º, pintura do século 17 de Diego Velázquez, motivo de quase obsessão para o artista, estão ali esgoelando.

Vemos os seus dentes brancos contra os fundos escuros, os ossos que escapam à carne, a arquitetura crua da musculatura, da mesma forma que a pose se restringe firme aos limites da sala que é uma cela, do trono do pontífice que é também uma cadeira elétrica.

Um desses homens da série inspirada em Velázquez, que não está na mostra do Masp, organizada por Adriano Pedrosa, é retratado esquelético, só o branco dos ossos, diante de carcaças de vaca ainda vermelho sangue. Francis Bacon enxergava uma beleza insuspeitada nos açougues —e ele não foi o primeiro.

Sua relação com a carne, literal —na década de 1950, ele chegou a posar sem camisa com os restos de um bicho partido ao meio para um retrato na revista Vogue—, está ancorada em figuras da história da arte que também viram nesses animais eviscerados uma natureza morta que refletia a nossa frágil condição humana, de Rembrandt a Chaim Soutine.

No caso, tão humana quanto animal. Bacon, nesse ponto, também aproximou a nossa carne da deles. Observador atento da obra do britânico Eadweard Muybridge, um dos pioneiros a dissecar o movimento humano em sequências fotográficas ainda no século 19, usando modelos homens sempre nus, Bacon despiu em mais uma camada as poses dos lutadores, desbastando seu verniz científico de origem para mostrar o emaranhado de músculos em cena como uma cópula feroz.

Não espanta que se desenvolveram em paralelo na obra do artista os seus chamados estudos para crucificações, que mais lembram corpos mutilados, costelas e colunas vertebrais à mostra, e monstros que são só dentes, massas de carne retorcida que mordem, vorazes, o nada, o espaço estéril da jaula vazia.

O artista sempre habitou esse lugar controlado, a arena das aparências daqueles seus homens solitários de terno, estando consciente da violência que pode a qualquer momento abrir frestas no assoalho, trincar os azulejos.

Bacon trata dessa fúria enjaulada, vontades reprimidas. Suas figuras são prisioneiros, os condenados de sangue quente que Piranesi mostrou só de longe em seus cárceres imaginários, vultos insignificantes engolidos pelas escadarias que se cruzam infinitas.

Ou mesmo a poça de sangue no chão de uma das famosas pinturas de saunas de Adriana Varejão, outra artista afeita à exuberância da carne, que arquitetou labirintos azulejados, grande parte deles jogos geométricos assépticos, com a exceção de um, que mostra os restos rubros de um ato de amor ou violência, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Os interiores nas pinturas de Bacon, por outro lado, são mais sintéticos e teatrais, brechtianos. Se há jaulas delineadas em todo lugar, não existe a quarta parede, e o centro da composição é sempre tomado por uma mesa, uma cama, um sofá ou um esquálido estrado de madeira, o tablado que é palco de um crime, de uma transa, de uma overdose. É o espaço agônico de toda sorte de espasmo.

Isso é nítido num dos trabalhos mais destoantes da mostra, o único interior vazio, a não ser pela luminária de traços minimalistas à direita do quadro. Toda a composição de "Jet of Water", ou jato d’água, tela da década de 1980 que é parte de uma longa série de trabalhos semelhantes, é atravessada por uma mancha esbranquiçada. Essa descarga, uma explosão próxima da ejaculação, rasga o cenário ao meio na diagonal, formando dois triângulos que se equilibram um sobre o outro, distorcendo a noção de horizonte.

Bacon, nessa tela, desafia a arquitetura, profana a própria jaula esquadrinhada à perfeição. Lembra uma tela clássica de outro britânico umas décadas mais jovem, "A Bigger Splash", de David Hockney, que retrata a piscina de uma casa modernista em Los Angeles, onde viveu, sem nenhum vestígio humano, a não ser o espirro d’água numa vasta superfície azul estática. Seu amante acabava de dar um mergulho, mas só vemos o rastro que ficou para trás, da mesma forma que o jato abala a rigidez da obra de Bacon.

É de vertigem que eles falam. Bacon chegou a mostrar isso na própria face. Em retrato atrás de retrato em que o cenário já se desfez, seu rosto, às vezes intercalado com o de algum amante, emerge de uma espessa massa negra ao fundo, uma visão que irrompe do vazio, em nada nítido. É como se víssemos todos eles debaixo d’água, num abismo submarino, sempre em pares ou trios, a ideia de sequência cinematográfica e de estudo do movimento, que marca sua obra.

Não há momento plácido, no entanto, todos eles sufocam. São semblantes mutilados vistos em série, com borrões que atravessam a cara —narizes, bocas e olhos em desarranjo, como se plasmados à revelia na tela, sempre em desespero. Bacon nos mostra no próprio rosto as marcas da violência insondável da solidão.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.