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Luiz Armando Bagolin

Como vida sexual de Francis Bacon transformou sua pintura

Mostra no Masp reflete impacto do artista na representação queer na cultura visual

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"Two Figures with a Monkey" [duas figuras com um macaco], de 1973, óleo sobre tela de Francis Bacon que integra a exposição "A Beleza da Carne", no Masp The Estate of Francis Bacon

Luiz Armando Bagolin

Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

[RESUMO] Exposição "Francis Bacon: A Beleza da Carne", que o Masp inaugura em 22/3, apresenta quatro décadas da produção do artista (1909—1992), um dos principais pintores do século 20. Seleção do museu terá como foco a representação de figuras masculinas, em geral amantes do pintor, em que a fisicalidade do corpo se mescla com a subversão de símbolos cristãos, a própria história da arte e o erotismo, compondo uma obra inovadora que abriu caminhos para a presença queer na cultura visual.

Em outubro de 1971, às vésperas da abertura de sua primeira grande retrospectiva na França, no Grand Palais, em Paris, Francis Bacon se deparava com mais uma grande tragédia em sua vida: um de seus amantes, George Dyer, acabara de cometer suicídio, com uma overdose de bebida e barbitúricos, no quarto de hotel onde estavam hospedados.

O corpo dele fora encontrado no banheiro, sentado no vaso sanitário, por Bacon e seus assistentes, Terry Danziger-Miles e Valerie Beston, que então solicitaram à gerência do hotel não divulgar nada sobre a morte durante pelo menos dois dias.

"Figura em Movimento", pintura de Francis Bacon - Divulgação

Bacon foi ao seu vernissage, atendeu galeristas, jornalistas, críticos de arte e o público interessado em sua obra de modo impassível, sem denunciar o seu estado de perturbação interior. Segundo John Russel, o artista demonstrou ali e nos dias subsequentes, em que teve que lidar com o funeral, familiares e amigos de Dyer, um autocontrole "ao qual poucos de nós poderiam aspirar".

Mais tarde Bacon diria que um conjunto de "demônios, desastres e perdas" o assombrava como se fosse sua própria versão da tragédia grega "Eumênides".

Para tentar pelo menos aplacar o sentimento de desolação e solidão que o preencheu, nos anos seguintes Bacon pintou uma série de retratos sombrios de Dyer e uma série de três "Trípticos Negros" ("The Black Triptytchs", 1972-1974), descrevendo o amante, antes, durante e depois do suicídio.

É como se o pintor quisesse descrever cruamente a vida e a morte, quadro a quadro, numa espécie de storyboard cinematográfico, sem, no entanto, conseguir deter o curso dos acontecimentos ou mudar o seu destino. A arte, neste sentido, mais do que sublimar um sentimento de perda, o reforçaria, escancarando o poder da impotência face aos acontecimentos prosaicos ou trágicos da sua vida.

A referência às "Eumênides", assim como o uso da estrutura de justaposição das cenas em trípticos, remetiam à principal obra inicial de Bacon, o "Três Estudos para Figuras na Base de uma Crucificação" ("Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion", 1944), nos quais as imagens de fúrias carpideiras ao pé da cruz ganham protagonismo revelando suas formas bizarras, a um só tempo animalescas e humanas.

É a partir deste trabalho (e dos estudos anteriores para ele) que a obra de Bacon se desenvolveu e galgou fama a partir de meados da década de 1940. Ele acreditava que a imagética da crucificação lhe permitia examinar certas áreas do comportamento humano de uma maneira única, já que o tema era como "uma armadura magnífica na qual você pode pendurar todos os tipos de sentimentos e sensações".

Para o crítico de arte John Russell, a crucificação na obra de Bacon é um "nome genérico para um ambiente no qual o dano corporal é infligido a uma ou mais pessoas e uma ou mais outras pessoas se reúnem para assistir". Muitos mestres antigos visitaram esse tema, de Mathias Grünewald a Rembrandt, de Michelangelo a Picasso, dos surrealistas a Graham Sutherland.

Em um trabalho como "Fragmento de uma Crucificação" ("Fragment of a Crucifixion", 1950), é clara, por exemplo, a referência à figuração de São Bartolomeu na pintura do "Juízo Final" de Michelangelo: segurando na mão esquerda uma pele humana desossada.

Em "Pintura" ("Painting", 1946), a carcaça inteira de um boi, lembrando o boi esfolado de Rembrandt e depois o de Soutine, é aberta ao fundo, atrás da figura de paletó enegrecida (o primeiro-ministro Neville Chamberlain?), horrível, com os dentes inferiores escancarados (que refere um still do filme "Outubro", de 1927, de Sergei Eisenstein), desaparecendo na sombra de um grande guarda-chuva aberto, tendo ao fundo três persianas como as retratadas numa fotografia do bunker de Hitler.

Ao seu modo, esta obra também comenta a célebre frase de Lautréamont, usada mais tarde pelos surrealistas: "belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção".

Nos "Três Estudos para uma Crucificação" ("Three Studies for a Crucifixion", 1962), o terceiro painel à direita traz novamente uma carcaça dependurada, mas a sua posição agora faz alusão ao "Crucifixo de Santa Croce", de Cimabue (1265), embora a figura —um torso contorcido, sem olhos e com as presas abertas no lugar da boca— esteja de cabeça para baixo.

Neste tríptico, já encontramos os principais elementos que irão compor a obra de Bacon nos próximos anos: grandes áreas pintadas com tinta líquida, bem rarefeita, a representar algum tipo de interior em perspectivas cônicas; figuras humanas deformadas e suas sombras (que se transfiguram em outras figuras); e corpos ou partes deles que parecem ter sido eviscerados ainda vivos, nos quais se assomam empastes de tinta.

A cabeça desta criatura remete a duas de suas pinturas da década de 1940, "Cabeça 1" ("Head I", 1947-8) e "Cabeça II" ("Head II", 1949), e tem como origem a reprodução de um babuíno ou chipanzé em posição agressiva, com as presas à frente, expondo a extensão de toda a sua mandíbula.

Bacon sempre foi muito impressionado pelas paisagens e pela vida selvagem africanas —a mãe dele viveu seus últimos anos na África; ele tirou muitas fotos no Parque Nacional Kruger. Em sua viagem de retorno, passou alguns dias no Cairo e escreveu para Erica Brausen, sua galerista, sobre sua intenção de visitar Karnak e Luxor, e depois viajar via Alexandria para Marselha.

A viagem confirmou sua crença na supremacia da arte egípcia, personificada pela "Esfinge" que ele também pintou ao seu modo. O caráter antropozoomórfico presente nas divindades egípcias, essa mistura de traços humanos e animais, além da antiga crença de que o espírito poderia possuir e habitar as imagens, o interessou vivamente.

Recentemente, a Royal Academy of London montou uma mostra intitulada "Man and Beast" ("Homem e Besta"), abordando esses interesses e a maneira como o artista procurou intercambiar partes do homem com as dos animais e, principalmente, partes dos animais com as do homem.

Bacon declarou em mais de uma ocasião que nós, seres humanos, somos apenas animais, com os mesmos desejos, necessidades, instinto e finitude. "Somos carne, somos potenciais carcaças", ele dizia.

Nas inúmeras variações que o pintor fez do retrato do "Papa Inocêncio X", pintado por Velázquez, culminando com a versão intitulada "Estudo Após o Retrato de Inocêncio X de Velázquez" ("Study After Velázquez's Portrait of Pope Innocent X", 1953), aparece a figura do alto sacerdote sentado, gritando como um animal selvagem (aqui a referência é um still do filme "Encouraçado Potemkin", de 1925, de Sergei Eisenstein), enquanto vai se dissolvendo junto às cores e largas pinceladas do fundo do quadro.

Bacon era obcecado por esta pintura de Velázquez. Afirmava que gostaria de saber pintar como o espanhol, mas o que realmente importa nessas suas releituras, fazendo Gilles Deleuze afirmar que seriam novas versões da pintura clássica, é a possibilidade de dar a ver a força bruta e instintiva do ser irrompendo e atravessando as aparências, a autorrepresentação de si mesmo, a pose política, a santidade, as vestes, a pele, tudo.

Um novo recorte sobre o artista se apresentará agora na mostra "Francis Bacon: A Beleza da Carne", no Masp (Museu de Arte de São Paulo), reexaminando sua obra a partir da ótica ou estética queer.

O professor da Universidade de Birmingham, Gregory Salter, um dos convidados para o seminário promovido pelo museu que antecedeu esta mostra, lembra em seu artigo "Francis Bacon and Queer Intimacy in Post-War London" (2017) que quando a pintura "Duas Figuras" ("Two Figures") foi exposta pela primeira vez, em 1953, na Galeria Hannover, em Londres, de Erica Brausen, a homossexualidade ainda era proibida na Inglaterra, e punida com prisão.

A pintura foi composta a partir de uma fotografia da década de 1880, de Eadweard Muybridge, fotógrafo que congelou os gestos e os movimentos dos corpos humanos e de animais, que retrata dois homens nus lutando no chão. O pintor retrabalhou a imagem para incluir a cama, o quarto, suas próprias feições distorcidas e as de seu amante à época, Peter Lacy.

"Manipulo os corpos de Muybridge nas formas de corpos que conheci", disse Bacon depois. Brausen, com medo da possível repercussão negativa, colocou a pintura em uma posição superior no fundo da galeria, longe da vista direta dos visitantes.

Desde então esta pintura teve uma existência "semipública", segundo o professor, seja por ter sido raramente exibida (a tela pertenceu ao artista Lucien Freud, que de amigo passou a ser inimigo declarado de Bacon e não a emprestava por nada), seja por sempre ser vista sob o filtro da fotografia de Muybridge, seguindo a interpretação feita por David Sylvester.

Para Salter, "essa tensão entre o público e o privado —a sensação de que existiam limites rígidos sobre o que poderia ou não ser expresso sobre a sexualidade queer na Grã-Bretanha do pós-guerra, juntamente com a sensação de que a experiência queer significava que esses limites inevitavelmente seriam transgredidos— é um elemento-chave da arte de Francis Bacon nas décadas de 1940 e 1950".

A pintura "Homem de Azul I" ("Man in Blue I", 1954) é representativa desta tensão entre dar a ver e não ver. O homem aparece debruçado sobre o que, aparentemente, é um balcão, de terno e gravata, em um ambiente obscurecido insinuando o espaço de um pub ou bar no qual o flerte, a troca de olhares, "cruising", é o principal elemento deflagrador da relação.

Bacon possivelmente baseou essa figura em um homem que conheceu e com quem ficou naquele ano, no Imperial Hotel, em Henley-on-Thames (Inglaterra). O artista fez sete versões desta pintura, em que a obscenidade dá a tônica, mas não trata da relação homossexual de modo explícito como em "Duas Figuras".

Segundo Salter, a dubiedade obtida por Bacon neste trabalho (e em outros) faz com que "ele possa ser sujeito ao olhar não queer —o olhar que lê essas imagens como preocupadas com momentos de isolamento intenso, talvez enraizado na ansiedade, desespero e tensão do existencialismo do pós-guerra".

O ambiente ambivalente no qual Bacon viveu e produziu a sua arte propiciou a condição ideal para a construção de uma mensagem indireta, de carga altamente sexual, atenuada pela teatralidade ofertada pela cultura, desde a própria história da pintura até a literatura.

No caso de Bacon, o romance "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, e sua leitura da homossexualidade como um ato obsceno (e incômodo para quem o presencia a distância), tiveram um lugar central.

O termo "obsceno" circulou a partir do final do século 19 com dois significados diversos de seu sentido originário ou o mais antigo ("obscaenus"): algo sinistro ou de mau agouro, tão terrível que não se quer ou não se pode ver.

O primeiro desses significados desautorizados foi entender obsceno como derivado de "obcaenum", ou seja, algo imoral, contrário à norma social ou ao que convém à sociedade.

O outro significado foi entendê-lo como derivado de "obscenum", ou seja, como algo fora de cena, contrário à cena teatral, e que, portanto, não se representa ou precisa ser fingido. O verdadeiro amor é obsceno, neste sentido, pois não admite fingimento, representação. Um amante não deve atuar para o seu parceiro, mas mostrar-se como realmente é.

Bacon parece nunca ter conseguido isso. Transformou a sua arte em uma espécie de jogo anti-expressionista, no qual tudo é rigorosamente medido, calculado (a imagem do caos de seu ateliê é apenas mise-en-scène), no qual ele controlava constantemente o que podia ou não ser mostrado. Ele mesmo propôs a arte contemporânea como "inteiramente um jogo pelo qual o homem se distrai".

Na biografia que Michael Peppiatt, seu amigo de bar e festas, publicou uns anos atrás ("Francis Bacon: Anatomy of an Enigma"), o pintor revê a sua vida como uma busca incessante pelo momento, pelo tempo, pela passagem do que não tem lugar ou permanência. "A vida em si é apenas uma série de sensações. Nós apenas vagamos de momento a momento. Toda minha vida tem sido assim, sabe, vagando de bar em bar, pessoa para pessoa, instante a instante."

O único lugar em que talvez tenha encontrado alguma estabilidade tenha sido exatamente a sua pintura.


FRANCIS BACON

Vida

Nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1909. Por parte paterna, era descendente do filósofo homônimo britânico que viveu nos séculos 16 e 17. O artista era o segundo dos cinco filhos de um militar e uma mulher que vinha de uma família que fez fortuna no ramo do aço e do carvão.

Criança com asma e muitas alergias, tinha pouca aptidão a atividades físicas, o que contribuiu para acentuar uma relação conflituosa com o pai, um homem enérgico.

A homossexualidade de Bacon foi o estopim para o rompimento. Ele foi expulso de casa em 1926, aos 16 anos, depois que o pai o flagrou experimentando roupas íntimas da mãe.

Em Londres, sobreviveu no início de mesada da mãe, empregos temporários, de encontros furtivos com homens e pequenos furtos. A partir dos anos 1930 iniciou sua carreira como artista.

Estilo

Um dos principais renovadores da pintura figurativa no século 20, Bacon retratou especialmente figuras masculinas, em retratos e nus. A fisicalidade do corpo é traduzida em texturas espessas e oleosas, conferindo às figuras formas quase abstratas.

As pinturas reúnem grande variedade de fontes iconográficas, revisitando temas religiosos, referências da história da arte e percepções eróticas sobre o corpo.

Morte

Em 1992, a asma crônica tornou-se um problema respiratório mais grave. Ao chegar à Espanha para visitar um amante, acabou internado. Morreu em 28 de abril, aos 82, após ataque cardíaco em Madri.

Francis Bacon: A Beleza da Carne

  • Quando de 22/3 a 28/7; terça (10h às 20h); quarta a domingo (10h às 18h)
  • Onde Masp (av. Paulista, 1578; São Paulo)
  • Telefone 11 3149-5959
  • Preço R$ 70 (entrada gratuita nas terças)
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