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Laura Liuzzi abre mão da identidade em 'tour de force' lírico comovente

Poeta desloca sua voz ao outro e contraria a egolatria assumida hoje sem pudor por escritores de todo gênero

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Reynaldo Damazio

Editor, crítico literário e tradutor, é autor de 'Movimentos Portáteis'

Poema do Desaparecimento

  • Preço R$ 64,90 (88 págs.)
  • Autoria Laura Liuzzi
  • Editora Círculo de Poemas

Na contramão da poética identitária tão urgente quanto redundante do momento, o livro "Poema do Desaparecimento", de Laura Liuzzi, desloca o lugar da voz para o entorno, para o outro, para as coisas e sua ausência, para as lacunas, que, segundo a psicanálise, nos constituem.

mulher loira séria diante de estante usando blusa cor vinho
A escritora Laura Liuzzi, autora de 'Poema do Desaparecimento' - Divulgação

O "tour de force" lírico a que Liuzzi se lança é comovedor, mas esse tremendo esforço de apagar-se ou de se ver por meio dos referentes, dos seres, das experiências, enfim, do real, compensa demais a leitura e instiga a pensar sobre as instabilidades da percepção —e o quanto é transitória e permeável a figura de sujeito, tanto do enunciado como da presença no mundo. Ou quanto é precário e atravessado por marcadores diversos o trânsito entre ser e estar, entre subjetividade e circunstância.

O verbo desaparecer e sua variante substantiva, desaparecimento, que já está no título desse longo poema dividido em fragmentos, aparece 47 vezes no fecho dos textos, como um fio condutor das inquietações do eu em estado de dissolução.

Só que o protagonismo aqui não é mais da autoria, daquela que denuncia, que se revolta, que grita, mas da própria dissolução: "tudo que existe / desaparece" é o final de um dos poemas-fragmentos do livro.

O verso parece uma obviedade, mas o que está em jogo aqui não é o fim objetivo da matéria, do corpo, da paixão, do mundo, mas de sua representação e sua funcionalidade expressiva.

A poesia e o desvio que opera na constituição do vivido como linguagem perecem quando aderem à realidade, ou se coisificam, num processo inverso à morte barthesiana do autor diante do texto literário.

Escreveu Roland Barthes, num ensaio de 1968: "desde o momento em que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa".

A autoria desaparece com a escrita, o escrito não é mais o autor. Como aquela "dor lida" no poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa, que já não é mais a dor sentida nem a dor registrada pela escrita, mas uma terceira, a da leitura, dos leitores.

Liuzzi, por sua vez, escreve: "este poema é/ uma fenda aberta na paisagem" e, noutra passagem, "pensar não é por dentro/ como uma atividade secreta/ pensamento é participação". O poema não é um pensamento isolado, singular, da paisagem, mas a própria paisagem que desaparece ou se transforma na palavra, no verso.

Crucial inversão a que a poeta conduz, ocultando bravamente a primeira pessoa do singular nas pequenas e imensas ocorrências do cotidiano, da natureza, dos sentidos, dos percalços e até do que está além do nomeável, que escapa ao dizível: "uma sinfonia/ eletrizante das abelhas operárias/ a serviço do favo e do mel/ do pólen e da flor/ a planta dos pés/ ferida, inteir / no chão".

Logo no início do livro, a autora alerta que "todo poema/ declara o nosso desaparecimento", em ousada proposição de autoapagamento. O que também contraria a egolatria assumida hoje sem pudor por escreventes de todo gênero, zelosos com a sua autoexposição.

Para que o leitor nasça, diria Barthes, o autor, a autora, ou a autoria, precisam morrer. É sempre no outro e para o outro que o poema se torna acontecimento.

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