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Podcast 'Serial' explora as contradições da prisão da ilha de Guantánamo

Em quarta temporada, produção do New York Times se firma como série de investigação sobre problemas da justiça criminal

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No mundo dos podcasts há um antes e depois de "Serial" —ao menos de sua primeira temporada. Lançado em 2014, o podcast conta a história de Adnan Syed, jovem americano de família paquistanesa preso pela suspeita de ter assassinado sua namorada. Com uma narrativa envolvente, a apresentadora Sarah Koenig parece se colocar próxima ao ouvinte, como que contando uma descoberta pessoal, tanto dos problemas da investigação como também sobre quem é Adnan.

O sucesso rápido e sem precedentes abriu as comportas para que incontáveis produções sobre crimes reais surgissem em podosferas afora.

ilustração mostra pessoas realizando atividades diversas em uma praia
Arte que ilustra a quarta temporada do podcast 'Serial' - Max Guther

Uma estreia tão impactante torna-se um legado difícil de carregar, em especial quando se torna um padrão de medida. Agora, em sua quarta temporada, supor que a série deva ou precise fazer o mesmo de antes soa como uma expectativa antiquada.

Desta vez, "Serial" se debruça sobre a prisão da ilha de Guantánamo, contando histórias de ex-detentos e oficiais que passaram por lá.

Essa alternância entre personagens e situações não permite o mesmo tipo de aprofundamento íntimo na história de um indivíduo, como na temporada inaugural. O que está em causa aqui são as faces de uma instituição, algo menos sedutor e que pode não engajar tanto aqueles com sede de mistérios, reviravoltas e revelações bombásticas.

Mas nada disso torna o podcast menos relevante em termos do que é capaz de contar sobre as controvérsias da justiça criminal. É esse seu interesse de fato, como declara Koenig logo no primeiro episódio.

Foi só agora que o podcast conseguiu contar essas histórias sobre Guantánamo, já que no momento original em que tentou contá-las, em 2015, muitas das fontes estavam indisponíveis ou eram muito menos abertas do que hoje.

É o caso do oficial Raul. Ele ouve hoje as gravações feitas há quase dez anos e diz não se reconhecer. Como podia estar tão convencido de que ele e os demais soldados na ilha estavam fazendo o máximo para dar aos prisioneiros um tratamento humanitário?

Esta é uma primeira camada da atual temporada —confrontar a imagem que os Estados Unidos buscaram sustentar de uma prisão ideal com o que de fato ocorria lá.

As histórias daqueles que passaram por lá mostram como a tortura psicológica, as acusações baseadas em evidências questionáveis, o tratamento desumanizante e xenófobo dado aos presos eram parte integrante do modo de funcionamento da instituição —tudo sob a justificativa soberana de combate ao terrorismo.

Não são coisas novas, mas é sempre razoável lembrá-las, uma vez que a prisão segue aberta, mesmo que parte dos americanos pareça ter esquecido.

Sem recorrer a detalhes explícitos ou fazer de relatos de violência e tortura um espetáculo, a série é capaz de mostrar o caráter perverso das práticas do local ao ouvir alguns dos responsáveis por elas, o que faziam e como veem a si mesmos.

Momentos como esse expressam uma segunda —e mais interessante— camada do podcast, os choques entre as posturas individuais daqueles que trabalharam na prisão e as demandas institucionais que a eles se impunham. Como diz um ex-administrador da prisão, você a cada dia vai pensando mais nos infortúnios dos detentos, até que alguma coisa acontece.

A suspeita permanente, que independe de evidências e justifica um tratamento autoritário com o suposto inimigo, é aquela com que o Estado americano tratou grande parte dos presos de Guantánamo, mantidos cativos sem razões claras ou acusação formal. Essa visão de mundo, representada pela instituição, no fim se sobrepõe aos ideias de indivíduos que se imaginaram capazes de contorná-la.

É o caso de Jeff, investigador do FBI designado para interrogar por semanas Ahmad, um sírio integrante da força aérea americana que atuava como tradutor em Guantánamo. Lá, foi acusado de traição e colaboração com prisioneiros.

O convívio entre ambos era quase diário, um estreitamento deliberado para que fosse mais fácil obter alguma informação do investigado. Só que o agente se veria como uma espécie de protetor de Ahmad, um amigo até.

Mas mesmo considerando haver este laço improvável, Jeff nunca deixou de guardar suspeita de que Ahmad tenha cometido algum delito. Ele também tem dificuldade em se lembrar das insistentes sessões com detectores de mentira, da relação de poder e intimidação com Ahmad.

Em situações contraditórias como essa se ressalta o apuro narrativo do produto, em texto e voz. Mesmo com seu tom sóbrio, Sarah Koenig parece contar para nós uma história que também a surpreende.

"Serial" provavelmente não fechará Guantánamo, não motivará passeatas, nem irá revolucionar a indústria de podcasts com esta temporada. Mas segue fazendo bom jornalismo investigativo em áudio, com clareza de propósito, e, sobretudo, sem se tornar refém de um modelo.

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