Descrição de chapéu
Artes Cênicas

Montagem de 'Hedda Gabler' respeita diálogos de peça com sutilezas

Direção de Clara Carvalho reflete persistência da opressão patriarcal e perguntas para as quais não encontramos solução

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria Eugênia de Menezes

Hedda Gabler

  • Quando Sex. e sáb., às 20h; dom., às 18h. Até 25 de agosto
  • Onde Auditório do Masp - av. Paulista, 1578, São Paulo
  • Preço R$ 80
  • Classificação 14 anos
  • Autoria Henrik Ibsen
  • Elenco Karen Coelho, Guilherme Gorski e Carlos de Niggro
  • Direção Clara Carvalho

Tornou-se uma espécie de lugar-comum na cultura brasileira dizer que Chico Buarque capturou a alma feminina em suas canções como nenhum outro compositor. Grosso modo, o mesmo se poderia de Henrik Ibsen quando o assunto é teatro. Grande mestre do drama moderno, o autor norueguês perscrutou o caráter feminino, criando grandes papéis de mulheres complexas e multifacetadas. Uma delas é "Hedda Gabler", atualmente em cartaz no teatro do Masp.

Nessa peça publicada em 1890, Ibsen leva adiante sua investigação sobre a desigual relação entre os sexos. Naquela que talvez seja sua mais conhecida criação —"A Casa de Bonecas"— uma mulher oprimida e infeliz no casamento resolve abandonar sua casa em busca de liberdade.

Carlos de Niggro, Karen Coelho e Guilherme Gosrki em 'Hedda Gabler'
Carlos de Niggro, Karen Coelho e Guilherme Gosrki em 'Hedda Gabler' - Ronaldo Gutierrez/Divulgação

O enredo trivial para os dias atuais, causou escândalo ao questionar as normas de uma sociedade machista. Mas "Hedda Gabler" leva todos esses conflitos a um ápice sem saída. Nos apresenta uma personagem sofisticada, manipuladora, inteligente. Presa em um casamento sem amor e à monotonia da vida doméstica.

Quem traduz e dirige a montagem atual é Clara Carvalho. Como atriz, ela esteve em "Espectros" e "O Inimigo do Povo", duas peças da maturidade de Ibsen. Em "Hedda", a diretora vale-se não só de sua intimidade com o autor, mas de seu grande conhecimento da linguagem e da estrutura do drama burguês. Constrói uma encenação segura, respeitando os tempos e a força dos diálogos.

É difícil contar e sustentar uma histórica trágica em tempos de banalização do sofrimento. O sarcasmo da protagonista ajuda a manter o prumo e a atenção do espectador. Muito à vontade na pele da controversa personagem, Karen Coelho entrega uma performance que é um dos pontos altos da criação.

A intérprete, que forjou sua trajetória em grandes textos da dramaturgia do século 20 como "Zoológico de Vidro", de Tennessee Williams, e "A Profissão da Sra. Warren", de Bernard Shaw, tem todo o instrumental para sustentar com brilho a personagem-título de Ibsen.

Hedda é uma anti-heroína fascinante: suas ideias e seu egoísmo são incômodos. Não há como aderir a ela completamente, nem como deixar de reconhecer sua lucidez. Após uma longa viagem de lua de mel, o casal Gabler chega à sua nova casa, uma luxuosa residência que o marido, futuro professor universitário, endividou-se para adquirir.

A ideia do amor como solução para todas as questões existenciais do indivíduo, tão em voga no romantismo do século 19, não convence o dramaturgo. Afinal, um enlace motivado pela paixão resolveria a injusta equação de poder entre os gêneros? Hedda não parece crer nisso.

A imagem mostra dois homens de costas um para o outro, ambos usando ternos escuros. O homem à esquerda tem cabelo encaracolado e está olhando diretamente para a câmera, enquanto o homem à direita usa óculos e tem as mãos nos bolsos, também olhando para a câmera. O fundo é escuro, destacando os dois homens.
Os atores Carlos de Niggro e Guilherme Gorski, de Hedda Gabler - Ronaldo Gutierrez/Divulgação

Ela segue à risca o roteiro para ter uma vida confortável e respeitável. Mas algo não funciona. Ela não é tola como o marido e sua tia, nem cínica como o juiz Brack, que vive a cortejá-la na expectativa de tornar-se seu amante.

Um antigo amor, o escritor Lövborg, reaparece para bagunçar ainda mais o arranjo capenga. Ele escreveu um livro que —tudo indica— é uma obra-prima. Cativou a afeição de uma mulher que parece amá-lo de verdade. Largou o álcool. Teria Lövsborg encontrado um propósito para a vida? O prazer da entendiada Hedda é provar que toda essa felicidade é muito mais frágil do que aparenta. O trágico invade a sala de estar da burguesia e não há rota de fuga.

À época de sua estreia, "Hedda Gabler" não agradou nem mesmo aos entusiastas do trabalho de Ibsen. Os grandes dilemas do "establishment" —tão bem enquadrados em seus textos anteriores— pareciam fora de foco. O escritor captura sofisticados jogos de poder, que não se estabelecem apenas de cima para baixo. "A história de um estado de alma", definiu Henry James.

Uma trama de tantas sutilezas perde um pouco do tônus com as interpretações sem nuances de Lövsborg (Carlos de Niggro) e Thea Elvsted (Mariana Leme) —o que contrasta com o bom desempenho do restante do elenco e amarra um pouco a proposta da direção.

Sem buscar uma atualização do enredo, Clara Carvalho descola um pouco a obra de seu contexto oitocentista ao usar a música ao vivo de Gregory Slivar e o canto de Nábia Villela. Sutilmente, deixa parar no ar a persistência da opressão da sociedade patriarcal e as perguntas para as quais ainda não encontramos solução.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.