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Sidney Molina

Chico Buarque chega aos 80 no auge musical, mas menos ídolo

Unanimidade nacional nos anos 60 e 70, ele passou a um público mais restrito nas últimas décadas

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Retrato de Chico Buarque produzido por Bob Wolfenson em 1995 Bob Wolfenson

Sidney Molina

É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

[RESUMO] Chico Buarque completa 80 anos na próxima quarta (19), coroando uma fase, iniciada na década de 90, de maturidade e maior sofisticação musical, produzida em paralelo ao período de liberdade política no país, mas que também coincidiu com uma menor difusão popular de sua obra. Beleza das canções mais recentes é mais difícil de ser apreendida e, como em sua literatura, exige do ouvinte saber entrar e sair de sonhos sem aviso prévio, analisa crítico musical.

Em 1979, Chico Buarque já discernia com clareza que o Brasil e o mundo entrariam em novo momento. Para seguir relevante, sua obra teria, igualmente, que se transformar. "Como compositor, eu tenho que continuar a trabalhar. Tenho que estar feliz, porque talvez não tenha mais problemas burocráticos (de mandar letra para a censura) e policiais (de ter que comparecer à delegacia etc). Continuar criando", afirmou em entrevista para o programa Vox Populi, da TV Cultura.

A obra inicial de Chico Buarque é fruto de quem cresceu no hiato democrático brasileiro dos anos 1950, aquele que viu emergir, em poucos anos, as Bienais Internacionais de Arte de São Paulo, a poesia concreta, a arquitetura de Brasília, o futebol de Pelé e Garrincha e, especialmente, a bossa nova.

E nem a ruptura institucional de 1964 —a ditadura "envergonhada"— teve força, no primeiro momento, para evitar o advento do cinema novo, do Teatro Oficina, da música nova (a música clássica brasileira de vanguarda), do tropicalismo e dos festivais de música popular. Foi a partir de então que Chico se viu acolhido pela geração mais velha —Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Elizeth Cardoso— e se tornou ídolo popular.

O compositor Chico Buarque retratado por Bob Wolfenson, em 2014 - Bob Wolfenson/Bob Wolfenson

"Escancarada" nos anos seguintes, a ditadura tentaria paralisar a efervescência e, deliberadamente, perseguiria os artistas. A partir de "Apesar de Você" (canção lançada em 1970 e que tocou no rádio antes de ser proibida), e sobretudo após o álbum "Construção" (1971), Chico virou uma voz central do embate com o regime militar e a censura.

A peça "Calabar" (1973), que escreveu com o cineasta Ruy Guerra, foi proibida na íntegra, e discos como "Chico Canta" (1973) e "Sinal Fechado" (1974) chegaram às lojas com cortes. Nada disso é novidade: com poucas variações, o relato está incorporado até mesmo no ensino escolar sobre a história do período, e pode ser acessado imediatamente com um par de cliques.

Porém, quando da entrevista para Vox Populi, a ditadura já estava "encurralada". Um ano antes, o LP "Chico Buarque" (1978) havia trazido a público as até então proibidas canções "Tanto Mar", "Cálice" e "Apesar de Você". A brechtiana peça "Ópera do Malandro", que Chico levou aos palcos em 1978, testava com sucesso os limites da recém-conquistada liberdade de expressão.

No mesmo momento em que, politicamente, o Brasil se libertava dos "ferros do suplício" ditatorial, no Hemisfério Norte as políticas de Thatcher e Reagan iniciavam a implantação daquilo que hoje se chama, de modo genérico, de neoliberalismo. O mercado musical também começava a passar por mudanças radicais.

Basta citar duas: a disseminação do jabá, o pagamento às emissoras de rádio e TV para a difusão de músicas específicas, e as fusões de gravadoras, evento comentado brilhantemente por Chico na canção "A Voz do Dono e o Dono da Voz" (1981). "Preparando a tinta / enfeitando a praça": a tão aguardada festa da liberdade, cantada em "Fantasia (1978), seria interrompida.

Até então ouvida em todos os rádios, a voz de Chico Buarque, responsável pela educação sentimental de todo um país e também pela vocalização da resistência política, passaria, pouco a pouco, a ser escutada apenas por seu próprio público. Quando rumava para a maturidade artística, o compositor deixaria de ter suas letras gigantescas e melodias marcantes aprendidas de memória e cantadas por gente de todas as idades e classes sociais.

Álbuns como "O Grande Circo Místico" (1983), de parcerias com Edu Lobo, e "Chico Buarque" (1984) —que tem sucessos como "Pelas Tabelas", "Mil Perdões", "Samba do Grande Amor" e "Vai Passar"— são o ponto final de uma era. Dentre as múltiplas camadas de sentido que integram o samba enredo escrito no ano das Diretas Já, adicione-se mais uma: é também esse contato direto entre o artista criador e seu público, essa relação de tipo "analógico", que ora em diante "vai passar".

Os experimentos sonoro-linguísticos presentes em "O Grande Circo Místico" já antecipavam, porém, a obra madura do compositor —"medo de subir, gente / medo de cair, gente / medo de vertigem quem não tem" (da "Ciranda da Bailarina"), em que "vertigem" inverte "gente"; ou ainda "Beatriz", a mais perfeita canção jobiniana jamais escrita por Jobim.

Nessa década de transição, os anos 1980, outras canções também apontavam para direções futuras, como "Uma Menina" (de "Francisco", 1987), "Uma Palavra", "Morro Dois Irmãos" e "O Futebol" (as três últimas de "Chico Buarque", álbum de 1989). Além das letras, todas elas trazem músicas de Chico —bastante tortas, nada óbvias, por sinal—, o que em si merece um comentário mais aprofundado.

Há quem subestime a capacidade musical de Chico em relação a aparentemente unânime admiração que ele angaria como letrista. De fato, na maior parte das parcerias com Jobim, Francis Hime e Edu Lobo, Chico "extrai" letras a partir de melodias compostas pelos amigos. Nunca o contrário: jamais ele oferece um texto escrito para ser musicado. Chico não escreve poesia: sua habilidade está em buscar palavras para sons, acordes e ritmos.

No entanto, a imensa maioria de sua produção como cancionista tem música e letra feitas por ele mesmo. Sua personalidade musical sofisticada surge já nos primeiros discos, em que traz para a estética bossanovista as soluções características de um violonista, diferentes do pianismo de Jobim.

Tecnicamente, quando compõe sem parceiros, Chico articula música e letra ao mesmo tempo, "com a música sempre um pouco à frente". Como no exemplo que ele nos dá sobre as canções "Deus lhe Pague" (1971) e "Desalento" (1971), é uma sonoridade rítmico-harmônica (na primeira) ou melódico-harmônica (na segunda) que puxa, por assim dizer, a ideia poética, já em formato cantado, a qual será depois desenvolvida e depurada.

Em "Deus lhe Pague", primeiro veio o som de um acorde obstinado ao violão, já com o seu ritmo nervoso, usando a tensão entre cordas presas e soltas; daí aparece um tenebroso baixo, que se move atrás do acorde; enfim, surge uma frase decidida, cantada com firmeza vocal, com notas prolongadas e descendentes, bem mais lenta do que a "máquina" tocada ao violão: "Deus / Lhe / Pa / Gue". Depois disso, afirma Chico, "é que inventei as coisas pra Deus pagar", afirmou em entrevista ao Programa Ensaio, da TV Cultura, em 1973.

Esse processo permite que ele explore, como poucos autores, as ambiguidades e ironias entre poesia e melodia, harmonia e ritmo. E é isso o que o leva às formas cíclicas, presentes em "Construção" (1971), aos saltos melódicos com sentido de distanciamento, às harmonias que comentam os afetos do texto.

Não há letra sem música na arte de Chico Buarque, e pérolas do manejo musical como "Joana Francesa" (1973), "Pedaço de Mim" (1978), "A Ostra e o Vento" (1998) e "O Futebol" (1989) foram feitas sem parcerias.

Nesta última, a melodia diagonal simula o drible, a letra descreve o jogo, cuja arte é análoga à da composição musical: "para tirar efeito igual ao jogador / qual compositor" / [...] "para anular a natural catimba do cantor / paralisando essa canção capenga, nega / para captar o visual / de um chute a gol / e a emoção da ideia quando ginga".

Justamente dois anos após cantar a "palavra anterior ao entendimento / não de fazer literatura / mas de habitar fundo / o coração do pensamento" ("Uma Palavra", 1989), Chico publica "Estorvo", seu primeiro (surpreendente) romance. Aproximando-se dos 50 anos, passa daí em diante a sobrepor obras puramente literárias a álbuns de canções cada vez mais especulativos.

O artista também recupera o prazer de fazer shows. Curiosamente, durante o período em que fazia sucesso nas rádios e tinha problemas com a censura, Chico havia se retirado das apresentações públicas, ficando quase nove anos fora dos palcos. É a partir dos anos 1990 que quase todos os seus álbuns terão também versões ampliadas gravadas ao vivo.

Para tanto, é importantíssima a escolha de Luiz Cláudio Ramos como arranjador e diretor musical. Ao contrário de seus principais e ótimos arranjadores do período anterior, como Francis Hime e Cristóvão Bastos, ambos pianistas, Ramos é violonista.

Isso, por assim dizer, amplia e desdobra o violão do próprio Chico, construindo texturas que circundam o instrumento ao invés de situá-lo como apenas mais um integrante do conjunto. Esse fato decerto ajudou a impulsionar sua criação mais recente na direção de novos rumos.

Formalizada nos anos 1990, essa colaboração perdura no século 21. Desde "Paratodos" (1993), o primeiro álbum no qual Ramos assina integralmente direção e arranjos, contam-se ao menos uma dúzia de discos lançados por Chico até "Que Tal um Samba ao Vivo" (2023).

Em paralelo desenvolve-se a obra literária, composta por seis romances e um livro de contos publicados até o momento. É uma produção vertiginosa. "Imagino o artista num anfiteatro / Onde o tempo é a grande estrela / Vejo o tempo obrar a sua arte / Tendo o mesmo artista como tela", canta ele em "Tempo e Artista" (1993).

Chico segue criando, e a contradição está em que essa criação —feita enfim com plena liberdade político-poética, sem amarras nem censuras, no auge de seu domínio artesanal como cancionista-musicista— jamais terá repercussão comparável a obras como "Roda Viva" (1968), "Construção" (1971) e "O que Será" (1976). O novo modelo de popularidade, fundado e difundido nas redes sociais, será, para Chico, o mesmo que a personagem de "A Rosa" (1979): "egípcia, me encontra e me vira a cara".

Como em "Futuros Amantes" (1993), porém, canções restarão submersas, com fragmentos, vestígios para decifrarmos ao longo dos tempos: "amores serão sempre amáveis". Ou, como em "Choro Bandido" (1985, parceria com Edu Lobo), as imagens de Homero, Apolo, Odisseu, Tirésias e Sócrates —"mesmo porque estou falando grego com a sua imaginação"— nos conduzirão "por labirintos e alçapões".

A própria parceria com Edu Lobo evoluirá, para além de "O Grande Circo Místico" (1983), porém com muito menos reconhecimento, em "Cambaio" (2001), trilha para teatro que traz, entre outras músicas, "Ode aos Ratos", "Veneta" e a magnífica "Noite de Verão", uma das melhores produções da dupla em qualquer tempo.

O tratamento das questões sociais por parte de Chico assumirá, nas canções deste século, novas configurações, inclusive musicais, sensíveis ao impacto da emergência do rap, reverberantes da indignação crescente perante a invisibilidade das periferias.

Nada mais distante da malandragem idealizada dos anos 70 do que músicas como "Assentamento" (1997), "Carioca" (1998), "Subúrbio" (2006) e, especialmente "As Caravanas", lançada por um Chico já septuagenário em 2017.

O movimento da "caravana do Arará", da periferia rumo às praias da zona sul do Rio, é emulado por música que não se aquieta, invariavelmente em progressão. A referência aos supostos "donos" da praia, "a gente ordeira e virtuosa que apela / pra polícia despachar de volta / o populacho pra favela / ou pra Benguela, ou pra Guiné", espelha o projeto escravizador, consumado no trajeto dos navios negreiros: "a culpa deve ser do sol", canta o refrão, um dos mais insuportavelmente irônicos dentre os já concebidos pelo compositor.

É também no século 21 que Chico retoma parcerias com Cristovão Bastos, com quem faz "Tua Cantiga" (2017), a segunda canção deles após a clássica "Todo o Sentimento" (1987), e João Bosco, com quem compõe o afro-samba "Sinhá" (2011), quase 30 anos após a guimarães-roseana "Mano a Mano" (1984).

"Sinhá" talvez seja o maior sucesso da discografia recente de Chico. A partir de uma melodia angulosa de Bosco sobre linha de baixo descendente, Chico constrói a história do amor proibido entre um escravizado preto e a sinhá branca casada; é praticamente um conto condensado em canção, e que inclui até mesmo mudança de narrador entre as duas seções da música.

Tal como Caetano Veloso fizera com Caymmi em "Terra", absorvendo o texto do precursor em sua própria melodia, em "Que Tal um Samba?" (2022) Chico carrega a estrutura musical autoral do samba-proposta com versos extraídos do ijexá "Beleza Pura", lançado por Caetano em 1979: "Um filho com a pele escura / Com formosura / Bem brasileiro / Não com dinheiro / Mas a cultura".

Em uma operação reveladora do tipo de preocupação artística que lhe aflige, em 2023, ano em que também recebeu o Prêmio Camões, o mais importante do mundo literário lusófono, Chico alterou um verso da letra original de "Beatriz", 40 anos após a primeira gravação dessa canção. Ao invés de "será que é divina a vida da atriz", ele pede para que agora se cante "será que é divina a sina da atriz".

Não é apenas sonoramente mais perfeito, mas, sobretudo, a operação poupa a palavra "vida" para deixá-la isolada, para que reste apenas na frase que sobra, desajeitada, sem rima, ao final dos versos: "e se eu pudesse entrar na sua vida".

Para seguir artisticamente em frente, Chico Buarque precisou ser menos ídolo. Dentro do possível, conseguiu: 5 dos 13 programas da série "Chico de Trás pra Frente", que atualmente apresento na rádio Cultura Brasil, comentam álbuns e gravações lançados a partir da década de 90. São canções que não se oferecem espontaneamente a nós, mas que temos de perseguir, o que implica saber entrar e sair de sonhos sem aviso prévio e aprender a cantar melodias mais difíceis, cuja beleza só se revela tardiamente.

A experiência da arte, mas não só ela, muitas vezes mostra que vale a pena abdicar de prazeres momentâneos para apostar em um gozo mais profundo adiante. E como o artista escreve no romance "Benjamin" (1995), "quem já fixou a vista ou a memória na escuridão absoluta sabe que, pouco a pouco, sempre se revelam, aqui e ali, contornos de um negror ainda mais profundo".

Enquanto isso, impactados e movidos por obra tão exuberante, seguimos a acompanhar Chico Buarque como aquele que um dia contou a história do trabalhador que "tropeçou no céu como se ouvisse música".

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