David Hockney e seu novo instrumento de trabalho
David Hockney esta reclinado num sofá no estúdio do piso superior de sua casa de praia. Na parede à sua frente há 18 telas de televisão, todas mostrando filmes que ele fez das paisagens próximas à sua casa. Será que elas mostram imagens de um céu californiano constantemente azul?
Se você imagina que sim, pense de novo. Nos últimos anos Hockney tem vivido em Bridlington, onde vem explorando obsessivamente o ambiente eternamente mutante de chuva, ventos, neve --e às vezes sol-- dos campos, árvores, plantas, estradas rurais e luz da parte leste da região de Yorkshire Wolds, na Inglaterra.
Ao longo de sua carreira, Bradford, a cidade onde Hockney nasceu, e Los Angeles vêm lhe proporcionando uma tensão criativa frutífera, com uma sensibilidade de Yorkshire aplicada aos usos e costumes da costa oeste americana. (Quando a mãe de Hockney o visitou pela primeira vez em Los Angeles, sua primeira pergunta foi por que ninguém tinha pendurado suas roupas lavadas ao ar livre, já que o tempo estava tão bonito.)
Esse processo vem sendo invertido nos últimos anos. "Bridlington pode ser isolada fisicamente, mas não eletronicamente. A tecnologia é tão boa aqui quanto é em LA. Criando esses filmes, começamos a chamar a cidade de Bridlywood. E, embora o tema seja muito local, acho que meus interesses essenciais --nas imagens e como são criadas e vistas-- vêm sendo bastante consistentes, não importa onde eu trabalhe."
O mural de telas vai formar um final espetacular da próxima mostra de pinturas, filmes e trabalhos criados por Hockney num iPad, que será inaugurada no sábado e tomará conta da Royal Academy inteira.
Nas telas serão mostradas imagens em superalta definição, criadas por câmeras múltiplas, do desenrolar das estações em Yorkshire, além de filmes em interiores, incluindo um número de dança coreografada de Wayne Sleep, um velho amigo de Hockney.
É altamente incomum que uma mostra dessa escala não seja uma retrospectiva, e o que a torna ainda mais incomum é o fato de que boa parte dos trabalhos nem sequer tinham sido criados quando a mostra foi planejada, quatro anos atrás.
"Quando primeiro falamos sobre a exposição, eu nunca tinha ouvido falar em um iPad, o que dirá trabalhado com um", diz Hockney. Hoje ele raramente está sem seu iPad, com sua moldura de madeira feita sob medida, que funciona como caderno de desenho, tela em tamanho grande e aparelho de conveniência para enviar cartas ao "Guardian" sobre temas que despertam o interesse do artista.
"É como uma folha de papel interminável que se adequou perfeitamente à sensação que eu tinha de que a pintura deveria ser grande. Hoje vejo que no final dos anos 60 não se falava tanto da morte da pintura, mas da morte da pintura com cavalete. Pintar com tela em um cavalete significa fazer uma pintura pequena. Assim que consegui um ateliê muito grande, tudo decolou."
Hoje Hockney trabalha num galpão enorme em um parque industrial de Bridlington; o local pode acomodar trabalhos que variam do grande ao enorme. A área é tão grande que o artista comprou uma frota de cadeiras de roda para facilitar os deslocamentos dele e sua equipe.
ENGAJAMENTO
Ele calcula o tempo passado desde que voltou ao Reino Unido pelo fato de já ter "observado sete primaveras. Eu as observei com grande cuidado e procurei captar o máximo que pude delas. Em um ano, perdemos a chegada das flores do espinheiro porque passamos uma semana fora em maio. Em outra ocasião, deveríamos ir a LA em junho, e os espinheiros ainda não tinham florido quando partimos. Por isso, este ano me recusei a sair de Bridlington por um dia sequer."
Seu engajamento com o lugar se reflete na maneira como ele organizou a mostra. "Há também alguns trabalhos sobre Yosemite, na Califórnia, feitos no iPad, mas a grandeza evidente de Yosemite ficará em salas menores que a grandeza menos óbvia de Woldgate. Gosto disso."
Hockney teria declarado certa vez que não poderia voltar a viver em Yorkshire porque os dias são curtos demais no inverno. "Me dei conta pela primeira vez que estava deixando de observar as estações do ano quando eu estava servindo de modelo para Lucian Freud e atravessava o parque Holland a pé todas as manhãs. O parque é um ótimo tema para artistas, mas como registrá-lo? É lento demais para o cinema, mas veloz demais para um único quadro; logo, são necessários vários quadros para mostrar as mudanças. Mas isso se aplica à maioria das coisas. E foi uma descoberta notável. Três anos atrás, eu não teria pensado que isso pudesse ser um tema. Mas, quando descobri, me dei conta imediatamente que era algo que poderia ser desenvolvido."
É uma estratégia que levou Hockney, agora com 74 anos, a ser comumente descrito como o maior artista plástico vivo do Reino Unido. Sua carreira começou com pop art e acabou por definir uma estética californiana, tendo sido pioneira no uso de temáticas gays (que inclui trabalhos de design para a ópera e o balé), feito uso inovador de novas tecnologias e questionado as certezas artísticas históricas sobre a técnica dos grandes mestres. Ainda hoje o artista manifesta uma energia inquieta.
Sua popularidade é refletida em uma onda de novos livros: o lauto catálogo da exposição na Royal Academy, "A Bigger Picture", vem com colaborações de Margaret Drabble e do próprio Hockney. Há um livro de conversas com o crítico de arte Martin Gayford, "A Bigger Message" (ambos saíram pela Thames & Hudson), além de "Hockney", uma biografia semi-autorizada da primeira metade de sua vida, por Christopher Simon Sykes (Century).
Na semana passada Hockney fez manchetes em duas ocasiões: primeiro por ter supostamente insultado Damien Hirst, enfatizando que todos os trabalhos na mostra da Royal Academy "foram feitos pelo próprio artista, pessoalmente". "Foi apenas uma frase que falei sem pensar duas vezes, e não vou levar a questão adiante." Depois, por ter sido indicado à Ordem do Mérito.
Em 1990 Hockney rejeitou o título de cavaleiro, mas ele diz que concordou em aceitar esta vez quando o secretário pessoal da rainha lhe telefonou para lhe explicar que a Ordem do Mérito é dada pela rainha, e não pelo governo. "Então tive que ser cortês, já que me considero uma pessoa razoavelmente educada."
Mas essa cortesia se soma a um espírito combativo quando se trata de questões para as quais Hockney dá importância, desde a ótica renascentista até a proibição do cigarro. "Nasci em uma família de mentalidade bastante independente."
Sua mãe era metodista devota e seu pai, um ativista socialista, objetor de consciência na Primeira Guerra Mundial e militante excêntrico que bombardeava os jornais --além de estadistas mundiais-- com cartas sobre suas causas, como faz seu filho hoje. "Ele morreu pouco antes da invenção do fax, que ele teria adorado, como teria adorado ainda mais os computadores, os blogs e tudo isso."
Hockney fala que suas próprias posições políticas já estavam definidas quando ele tinha 20 e poucos anos, "numa espécie de anarquismo que remetia tanto à esquerda quanto à direita. A responsabilidade pessoal é uma coisa meio que de direita que os anarquistas defenderiam e que eu defendo. Cuidar de seu próximo é uma coisa de esquerda, algo que eu também defendo. Em última análise, represento a liberdade e acho que é preciso defendê-la. Essa coisa toda do combate ao cigarro simplesmente não é válida. Os antitabagistas precisam encarar o fato de que eu ainda estou aqui, e com muita energia. Do que eles estão falando? Alguns de meus colegas --Picasso, Monet, Renoir-- viveram até a velhice avançada, fumando. Meus amigos vêm morrendo por consumir álcool. E é uma tremenda falta de bons modos. Fumar é legal, pagamos impostos, mas mesmo assim somos tratados como crianças. Na realidade, meu pai era tremendamente contrário ao tabagismo, e há um filme em que ele aparece tentando arrancar um cigarro de minha boca, mas amigos e pessoas que o conheceram bem lhe dirão que ele e eu somos bastante semelhantes."
DOSE DE AUTOCONFIANÇA
Hockney nasceu em Bradford em 1937, o quarto de cinco filhos. Como jovem artista de talento precoce, ele não estava interessado em paisagens ou na zona rural --"se bem que eu colecionasse ovas de rãs e coisas desse tipo"--, mas em publicidade, pôsteres e a escritura das placas que via espalhadas pela cidade.
Adolescente, ele ganhou o segundo prêmio num concurso nacional promovido por um jornal para desenhar um anúncio de um relógio --anos mais tarde ele soube que o primeiro lugar foi dado ao jovem Gerald Scarfe--, e ele se transferiu do colégio para a Bradford School of Art. Seguindo o rastro de objetor de consciência de seu pai, trabalhou como assistente de enfermagem em um hospital, para não prestar serviço militar.
Em 1959, mudou-se para Londres e se matriculou no Royal College of Art, onde seus colegas incluíram R.B. Kitaj, Allen Jones e Patrick Caulfield. Hockney diz que sua criação lhe infundiu certa dose de autoconfiança --"o suficiente para eu não ficar incomodado quando zombavam do meu sotaque". E o sucesso chegou de imediato. Ainda estudante, expôs seus trabalhos em mostras importantes e vendeu alguns deles.
Quando deixou o Royal College, tendo recebido sua medalha de ouro, seus trabalhos começaram a ser vendidos pelo conceituado marchand John Kasmin, e Hockney rapidamente se tornou uma das figuras mais conhecidas naquela que se converteria na "swinging London". Mas ele ainda sentia que a cidade era apenas uma plataforma de lançamento para ele.
"Cheguei em setembro de 1959, mas no verão de 1961 eu já tinha passado alguns meses em Nova York" --meses esses que resultaram em um primeiro conjunto de gravuras que atualizou a série de pinturas "A Rake's Progress", de William Hogarth. "Assim que cheguei lá, percebi que era o lugar certo para mim. Era uma cidade 24 horas, de uma maneira que Londres não era. Não tinha importância de onde você vinha. Eu simplesmente amei, e então, quando fui a LA, adorei mais ainda. Assim, durante a maior parte do tempo da 'swinging London' eu estava na Califórnia. E, quando eu voltava, Londres não me parecia tão 'swinging' assim. Era 'swinging' para algumas poucas pessoas, mas LA era assim para muitas, coisa que eu preferia. Em LA, em 1964, havia bares gays enormes. Não havia nada como isso em Londres, nem mesmo em Nova York."
Em meados da década de 1960 Hockney começou a criar algumas das pinturas com as quais será eternamente associado --de piscinas, rapazes, céus azuis e pessoas bonitas. Trabalhos como "A Bigger Splash" e os grandes retratos duplos, como o de Christopher Isherwood e Don Bachardy não apenas cristalizaram a visão artística dele, mas também a visão que a Califórnia tinha dela mesma.
E Hockney diz que não foi por coincidência que esse trabalho emergiu quando ele viveu no coração da indústria do cinema. "Eu peguei o final do grande período de Hollywood, que durou de 1920 e 1970. Eles criaram algumas obras-primas, e, quer pensassem que estavam fazendo arte, quer não, eram grandes criadores de filmes e imagens."
Hockney era amigo do diretor Billy Wilder. "Os diretores são muito mais interessantes que os astros. Billy costumava dizer 'me mostre um jovem ator em ascensão e eu lhe mostrarei um ator ruim'."
Wilder o apresentou à "velha Hollywood. Mas agora Billy se foi, e não haverá pessoas como ele outra vez. Muitos dos pequenos mundos que eu conheci bem já se foram: o de Christopher Isherwood, o de Tony Richardson, o mundo que cercava Joan Didion. Por isso, quando volto a LA hoje em dia é um pouco diferente. Pelo fato de minha audição ter deteriorado, não consigo participar da vida social como fazia antes, mas ainda gosto de LA, e os EUA ainda é um lugar cheio de energia. O país exagerou com a coisa do antitabagismo, e os americanos estão um pouco dopados com antidepressivos desde que pararam de fumar, mas o país ainda pode ser um lugar incrivelmente criativo, porque ainda é livre, e sempre vai se beneficiar disso, enquanto continuar a ser livre."
A perda de audição de Hockney contribuiu para o fim precoce de sua carreira como designer de balé e ópera que começou com seu hoje muitas vezes reapresentado "Rake's Progress" em Glyndebourne, em 1975. Mas, de modo característico, essa perda também vem levando algumas teorias a ser aventadas. A primeira delas diz que a percepção visual de Hockney vem melhorando na medida em que sua audição declina.
"Uma pessoa que não enxerga se localiza no espaço por meio do som. Se você não pode ouvir, você se localiza mais visualmente. E, sendo uma pessoa sintonizada com o mundo visual, isso é muito perceptível. Eu enxergo mais." A segunda teoria diz respeito a seu herói, Picasso, que declarou certa vez que a música era a única arte na qual ele não sabia identificar quais eram as obras-primas.
"Obviamente, então, ele sofria de amusia (incapacidade de perceber sons musicais). Mas, ao mesmo tempo em que não ouvia tons, ele obviamente enxergava mais tonalidades que qualquer outra pessoa, porque seu domínio do chiaroscuro era fantástico, tão bom quanto o de Rembrandt." Hockney não conheceu Picasso pessoalmente. "Eu sentia respeito demais por ele. Por que quereria fazê-lo desperdiçar seu tempo?" Mas, para ele, Picasso ainda é o maior artista do século 20. "Não apenas ele foi o maior pintor, foi também o maior escultor. Acho que ainda não captamos plenamente o que ele realizou. E, é claro, ele teria adorado algo como o iPad."
Hockney chama a atenção para o fato de que tanto o pincel quanto um iPad são "tecnologia", mas ele vem sendo precoce na adoção de novas tecnologias desde meados dos anos 1960, quando começou a usar uma máquina fotográfica para auxiliar sua memória. No início da década de 1970, estava criando suas primeiras "joiners", como descrevia suas grandes montagens de fotos que produziam um efeito quase cubista, em resposta à sua insatisfação com a distorção gerada por lentes de ângulo aberto.
E não demorou a tomar consciência das possibilidades de copiadoras de qualidade típica de escritório e dos aparelhos de fax. Hockney também fez pesquisas de história da arte sobre a criação de imagens, abrangendo o estudo dos pergaminhos chineses, conduziu uma longa crítica da fotografia e fez um estudo prolongado do uso da ótica pelos grandes mestres da pintura, crítica essa que culminou sem eu livro "Secret Knowledge", de 2001.
Ele argumenta que seu próprio trabalho com várias máquinas fotográficas não é tão distante, essencialmente, do que Caravaggio procurou fazer. "Caravaggio tinha o equivalente a nove câmeras. Eram colagens. Quando chegamos a Vermeer, é apenas uma câmera, como temos hoje. Com nove câmeras, nossos olhos observam de uma maneira que não fazem com uma só. Você vasculha continuamente, olhando com muito mais atenção. E, de uma maneira, é mais como desenhar. Há questões de composição e infinitas maneiras de fazer."
Seu interesse pela criação e o poder das imagens também subsidia outra teoria. "Parece que a história da arte parou, porque ela não sabe como tratar a fotografia e, portanto, como decifrar o que é feito hoje. Mas, se você simplesmente analisar a história das imagens, fica bem mais fácil. Durante 500 anos a Igreja exerceu controle social porque foi a principal fornecedora de imagens.
Ainda podemos apontar para Darwin, mas no início do século 19 o controle social se deslocou, juntamente com o controle das imagens, para o que hoje chamamos mídia: os jornais, depois Hollywood e a televisão. Hoje há uma nova revolução em curso, e as imagens estão passando para os indivíduos. Rupert Murdoch vai perder seu poder, assim como aconteceu com a igreja. Isso pode provocar caos terrível. O que acontece quando a autoridade vai embora? Não sabemos. Mas sabemos que nada é para sempre. Embora eu esteja escondido em Bridlington --coisa que gosto, porque é difícil para as pessoas darem uma passadinha, então é possível trabalhar muito--, posso assistir a tudo."
BADEN-BADEN
Hockney tinha retornado regularmente à região para visitar sua mãe, que morreu em 1999. Hoje ele vive com John Fitzherbert, seu parceiro há mais de 20 anos, na grande pousada convertida em residência que ele comprou para sua mãe.
"Morei em LA por tanto tempo que sempre serei um 'angeleno' inglês, mas hoje as grandes cidades são menos interessantes e sofisticadas que eram no passado, para mim. Para ver algo novo, é preciso voltar para a natureza. Quando dizem que o gênero paisagem já foi feito, isso é impossível. Não dá para se cansar de olhar a natureza. Nós nos cansamos apenas de nossa maneira de olhar para ela. Portanto, procure uma nova maneira de olhar."
Pouco depois de retornar a Bridlington, Hockney completou a pintura gigante --12m x 4,5 m-- "Bigger Trees Near Warter" para a exposição de verão da Royal Academy, e no ano seguinte a doou à Tate. É indicativo da escala de sua produtividade recente o fato de a obra não fazer parte de sua mostra na Royal Academy. Hockney diz que, depois de a exposição abrir, pretende fazer uma de suas viagens regulares à estação de águas de Baden-Baden.
"Posso chegar lá me arrastando de joelhos e ir embora dançando. Mas, para ser honesto, é meu trabalho que me conserva funcionando, tanto quanto Baden-Baden. Meus colegas do teatro sempre ficavam exaustos depois da estreia de um espetáculo. Mas eu sempre já estou com a cabeça voltada para outra coisa."
Ele diz que sua redescoberta da paisagem e de novas maneiras de captar paisagens é "tão fascinante e instigante quanto qualquer coisa que já fiz antes. Mesmo depois da Royal Academy, não vou parar de fazer esse trabalho. É maravilhoso ter encontrado um lugar como este, onde praticamente fico sozinho para fazer o que bem entendo. Quando meus amigos de LA me perguntam o que ando fazendo, digo que estou em uma locação. Eles entendem isso, embora a filmagem venha sendo demorada. Mas você chega a uma fase da vida em que é isso que deseja. Monet ficou em Giverny, Cézanne, em Aix, Van Gogh, em Arles. Você pode precisar de uma cidade grande quando é jovem, mas chega um ponto em que você precisa de outra coisa. Encontrei essa coisa aqui."
Tradução de CLARA ALLAIN.
Livraria da Folha
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