"Não dá para fugir de quem você é", diz Vincent Cassel
Vincent Cassel é muito charmoso. Ele tem consciência disso. Todo o mundo que está no recinto também tem consciência disso: a fotógrafa, sua assistente, a maquiadora, a equipe de moda.
Quando ele fala, cada piadinha é saudada com risadinhas coletivas. Quando move uma perna ligeiramente para alterar sua pose, a fotógrafa reage com admiração ofegante: "Perfeito, isso é perfeito". É só uma questão de tempo até irrompermos todos em aplausos e atirarmos rosas de cabos longos a seus pés.
Terminada a sessão de fotos, nos acomodamos em uma sala adjacente naquele que talvez seja o hotel mais descolado de Paris, repleto de espelhos posicionados em ângulos inteligentes e lâmpadas baixas que batem em sua cabeça a todo momento.
Divulgação |
Vincent Cassel e Laura Neiva em "À Deriva", filme de Heitor Dhalia |
Cassel, 45, acomoda seu corpo comprido numa cadeira branca, com as pernas esbeltas dobradas para um lado, como um abajur Anglepoise. "Muito bem", diz ele com as sobrancelhas erguidas e um semisorriso malandro nos lábios. "Vamos fazer esta entrevista em inglês?"
Cassel precisa perguntar porque o inglês é apenas uma das muitas línguas que fala, sendo as outras o francês, sua língua mãe, o russo (que aprendeu para um papel no cinema) e o português brasileiro (ele e sua esposa absurdamente bela, a atriz italiana Monica Bellucci, têm uma casa no Rio de Janeiro).
Para que fique registrado, eu me ofereço para falar em francês, mas Cassel diz que não com a cabeça. "Podemos fazer uma mistura", ele sugere. "Un mélange?", digo eu, num esforço vergonhoso para lhe impressionar. Em vão: ele fala inglês fluente até o fim da entrevista.
DISCÍPULO DE FREUD
Seu papel mais recente é em "Um Método Perigoso", de David Cronenberg, que conta a história das origens da psicanálise, mapeando o relacionamento entre Sigmund Freud e Carl Jung. Cassel representa o anárquico Otto Gross (exemplo de uma de suas falas: "Nunca reprima nada") e consegue aperfeiçoar um inglês com sotaque austríaco.
"Aceitei o desafio de não soar francês. Em termos de sotaque, acho que este filme é uma das melhores coisas que já fiz", diz ele, não inteiramente modesto.
O filme lhe deu a oportunidade de cooperar novamente com Cronenberg e Viggo Mortensen (que faz Freud), com os quais havia trabalhado antes no thriller "Senhores do Crime", de 2007, sobre a máfia russa. "A primeira coisa que vem à mente quando penso em David é 'cavalheiro'", fala Cassel. "Ele é divertido, moderado, gentil e realmente gosta de atores, o que nem sempre é o caso."
Além de ser ator premiado, Cassel é produtor de cinema, pai de duas filhas (Deva, 7 anos, e Leonie, 21 meses), bailarino de balé e, é claro, um homem excepcionalmente estiloso.
Hoje ele está vestido quase inteiramente em tonalidades de cinza: tênis Nike cinzas, jeans cinza, um suéter cinza de cashmere da Bompard ("minha mulher acaba de fazer um comercial para a grife", ele admite. "Ela voltou com um monte de peças --bacana."). Até seus cabelos combinam com o look.
O cinza talvez seja um indicativo de seu desejo de fundir-se com o pano de fundo. "Antigamente meu estilo chamava mais a atenção. Quando você é mais jovem, você quer existir, quer mostrar tudo o que faz", ele explica. "Assim que comecei a ser reconhecido, passei a ser muito mais discreto.
Guillaume Horcajuelo/Efe |
Vincent Cassel com as atrizes Debora Bloch (esq.) e Laura Neiva no Festival de Cannes |
Cassel é muito reconhecido na França --onde ele e Bellucci são tratados como uma espécie de versão parisiense de David e Victoria Beckham--, mas, na tela, possui grande capacidade de transformar-se fisicamente.
Quando representou um notório gângster francês em "Inimigo Público Número 1: Instinto de Morte", quatro anos atrás, ele ganhou 19 quilos para reforçar seu físico de 1,87 metro.
Mais recentemente, voltou ao balé para o papel de diretor artístico controlador em "Cisne Negro", para o qual seguiu um treinamento rigoroso que o deixou com bolhas múltiplas, "e não apenas nos meus pés: também nos quadris, na lombar, no pescoço".
VILÕES
Cassel sempre se interessou em representar vilões. Em "O Ódio", o filme de 1995 que o levou a ser conhecido, representou um vândalo adolescente decidido a matar um policial; em "Irreversível", de Gaspar Noé, ele é o marido vingativo que está decidido a matar o homem que estuprou sua mulher; em "Senhores do Crime", seu personagem estupra uma menina de 14 anos e a leva à prostituição.
Tudo isso surpreende um pouco quando se considera que seu pai, Jean-Pierre Cassel, foi um ator de comédias ligeiras que ficou conhecido como "o Fred Astaire francês" e trabalhou para diretores da Nouvelle Vague como Claude Chabrol e Luis Buñuel. Mas Cassel Jr. não está interessado em ser simpático.
"Creio que os chamados vilões nunca são inteiramente maus", ele explica. "Acho que isso é o que eu posso fazer que mais se aproxima da realidade: as pessoas se fazem de simpáticas, mas ninguém é bonzinho na realidade. Todos nós temos que contrabalançar isso com algo sombrio. É a maneira como equilibramos isso que gera algo interessante. Meu personagem em 'O Ódio' não é mau: é infeliz, e geralmente as pessoas são assim. A maioria de nós tem raiva." Ele se interrompe, então dá uma risada. "Quem sabe um dia eu faça o papel de Buda."
Seu pai morreu em 2007. "Assim que seus pais morrem, você para de brigar com eles", diz Vincent Cassel. "Eu percebi que, quanto mais mudava meu rosto para aparecer em filmes, mais me parecia com ele. Sempre gostei de me disfarçar, porque estava tentando fugir da imagem dele. Mas isso tudo não vale a pena. Não dá para fugir de quem você é."
E, por falar em rostos, o de Cassel não é de se jogar fora. Não está sendo usado pela Yves Saint Laurent no momento para promover uma loção pós-barba? "Não", responde Cassel, ofendido. "Eu não faria isso." Mas pensei que o tinha visto em um outdoor... "Não é uma loção pós-barba", ele diz, como se explicasse para uma criança algo que é muito evidente. "É uma colônia."
Ah, bom. Parece que essas diferenças têm importância. Vou ter que acreditar no que diz Cassel --afinal, ele é melhor que eu nos idiomas.
Tradução de CLARA ALLAIN.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade