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Ronaldo Entler

Reações a foto de Lula expressam visão rígida do fotojornalismo

Imagem com múltipla exposição na Folha causou polêmica e reavivou dogmas, como a solenidade do clique que captura o fato

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Ronaldo Entler

Crítico de fotografia, doutor em artes pela USP e professor da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado)

[RESUMO] A Folha trouxe, na primeira página da edição de 19 de janeiro, uma foto de Gabriela Biló produzida, como dizia a legenda, com múltipla exposição, recurso que permite sobrepor duas tomadas distintas. Alguns enxergaram na imagem a insinuação de um presidente Lula alvejado; outros, uma figura blindada aos ataques. Discutiram-se também questões formais sobre a fotografia na imprensa. Muitos defenderam a visão, aqui problematizada pelo autor, do fotojornalismo reduzido a seus parâmetros mínimos, preso ao momento solene do clique dos fatos.

A Folha trouxe, na primeira página da edição de 19 de janeiro, uma foto de Gabriela Biló que mostrava Lula curvado atrás de um vidro quebrado por um objeto contundente. A imagem foi produzida utilizando múltipla exposição, recurso que permite sobrepor duas tomadas distintas: no caso, uma de Lula, outra do vidro danificado do Palácio do Planalto.

As leituras foram diversas, sendo duas as mais recorrentes: tendo em mente a violência dos atos golpistas a que havíamos assistido dias antes, alguns enxergaram ali a insinuação de um presidente alvejado por um tiro, outros o viram representado como uma figura blindada aos ataques. Na explicação da autora, a imagem mostra a resiliência de Lula e significa apenas que a vida continua.

Primeira página da Folha de 19.jan
Primeira página da Folha de 19.jan - Folhapress

Os debates em torno dessa foto tomaram as redes, envolvendo comentaristas políticos e especialistas em fotografia. Incluiu também umas tantas ofensas pessoais à fotógrafa. Veículos de imprensa, incluindo a Folha, repercutiram a polêmica.

Para apontar os problemas dessa sobreposição de imagens, muitas críticas recorreram a uma sobreposição de julgamentos: de um lado, consideraram que, ao situar Lula em uma suposta linha de tiro, a imagem dava combustível a um embate político já bastante violento. De outro, condenaram o artifício da múltipla exposição, sugerindo que o fotojornalismo deveria se limitar aos fatos e não poderia recorrer a "truques" desse tipo.

Penso que essas duas questões mereceriam ser tratadas separadamente. Quero aqui me posicionar brevemente sobre uma e mais detidamente sobre a outra.

Não gosto da imagem pelos sentidos que ela produz. Não vejo em nenhuma de suas leituras, nem nas mais positivas nem nas mais negativas, uma contribuição para o entendimento da atual realidade política brasileira. Continuaria não gostando se essa mesma foto tivesse sido obtida de forma mais convencional, com uma única exposição.

Penso que, independentemente da técnica, encaixar elementos distintos da cena para dar à imagem segundos sentidos se tornou um chavão do fotojornalismo. Esse recurso já produziu imagens icônicas, mas, na maioria das vezes, o que resta é um apelo efêmero do tipo: "Olha que sacada do fotógrafo!". A esta altura, é tudo o que tenho dizer sobre a foto de Biló.

Fiquei surpreso, no entanto, ao perceber que grande parte dos fotógrafos e críticos que habitam minhas redes deram mais atenção ao procedimento da múltipla exposição, que macula o gesto solene e discreto por meio do qual o fotojornalista se compromete com os fatos, que ao sentido produzido pela imagem. Esse debate merece ser levado adiante, porque dele podem surgir parâmetros mais claros e, quem sabe, mais atualizados tanto para a produção quanto para a crítica do fotojornalismo.

O clique

O peso que o fotojornalismo dá a esse gesto discreto de captação tem uma história. A fotografia surgiu no século 19 sob a crença de que seu automatismo minimizava as intervenções da mão humana e garantia a veracidade da imagem. As longas exposições dos primeiros processos ainda exigiam que a figura humana se conformasse ao artifício da pose.

Só a partir dos anos 1880, com o aumento da sensibilidade dos materiais fotográficos, foi possível congelar objetos e corpos em movimento. Sem que o fotógrafo precisasse construir a cena, a fotografia se viu investida de nova dose de credibilidade.

Aqui, nascem algumas ideias-chave que dariam forma a essa técnica moderna: a noção de instantâneo, que se tornaria sinônimo de fotografia, o flagrante, que garantia a espontaneidade da cena captada, e o clique, onomatopeia que passou a nomear o gesto sintético de criação fotográfica.

Desde sempre, a fotografia foi exaltada por seu valor documental: ela se tornou ritual de memória de uma burguesia ascendente, revelou paisagens distantes a serem colonizadas e comportamentos exóticos a serem domesticados, catalogou patologias diversas e ajudou a estabelecer parâmetros que definiram o corpo e o espírito saudáveis. Esses são exemplos que demonstram que os procedimentos documentais mais rigorosos podem ser carregados de viés ideológico e produzir violência.

A ideia de reportagem já existia na fotografia do século 19, mas o mercado do fotojornalismo só viria a se consolidar no início século 20, quando a impressão de clichês em meios-tons se tornou comercialmente viável e quando câmeras profissionais de pequeno formato deram maior mobilidade aos fotógrafos.

As revistas ilustradas que surgiram entre os anos 1920 e 30 —como a francesa Vu, a estadunidense Life e a brasileira O Cruzeiro— construíram um espaço muito prolífico para o fotojornalismo. Nelas, era comum que os fotógrafos simulassem a espontaneidade por meio da pose ou, mais que isso, que roteirizassem os acontecimentos que viriam a registrar (por exemplo, ao mostrar a rotina glamorosa de uma celebridade).

Essas revistas exploravam recursos gráficos sofisticados que davam às fotos recortes ousados, as organizavam em sequências narrativas complexas e as colocavam em relação com o texto. Apesar de todos esses artifícios, a credibilidade do fotojornalismo permanecia apoiada na ilusão de que a imagem capta, com intervenção mínima, uma realidade que se coloca diante da câmera. A mística em torno do clique tornou invisível para o leitor muitas das etapas da produção fotojornalística.

Essa suposta economia do gesto criativo foi uma bênção e uma desgraça para o meio profissional. Ela trouxe para a fotografia a ideia de gênio, associada ao dom demonstrado por alguns mestres de aguardar pacientemente e, em seguida, captar ágil e intuitivamente o instante certo. Em contrapartida, grande parte daqueles que se engajaram no ofício do fotojornalismo continuaram sendo vistos como operadores de uma máquina que, em boa medida, resolvia as imagens por meio de seu automatismo.

Não foi confortável ler o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser dizendo, em tom de provocação, que o fotógrafo é um "funcionário do aparelho". Para muitos profissionais, tal subordinação se traduzia em problemas nada filosóficos. Poucas décadas atrás, os fotógrafos ainda lutavam pelo direito de ter suas imagens creditadas com seus nomes que, no entanto, os leitores raramente se davam ao trabalho de notar. Boa parte dos fotógrafos ganhava menos que seus colegas redatores e, com frequência, eram tratados por eles como seus subalternos. Ouvimos muitas histórias de um tempo em que o motorista que levava o repórter a campo podia ser encarregado de fazer alguns cliques para a pauta.

Quero crer que essa realidade tenha mudado, mas outras crises vieram.

Com o advento da internet, as publicações impressas minguaram e o jornalismo teve que se reinventar. Os veículos que sobreviveram reduziram significativamente o tamanho de suas Redações. No caso dos fotojornalistas, as equipes fixas foram praticamente extintas, porque os bancos e as agências de imagem passaram a oferecer, a um custo muito menor, imagens de todos os acontecimentos para todos os gostos.

Não há dúvida de que a captação do instante e a edição da reportagem deixam margem para uma ampla gama de escolhas criativas e autorais e que o planejamento e a edição da reportagem são parte legítima do processo de produção da reportagem fotográfica.

Contudo, a afirmação insistente e mal colocada de que o fotojornalismo se limita aos fatos reduz essa atividade a seus parâmetros mínimos, como se qualquer dedo apoiado sobre o disparador fosse capaz de satisfazê-lo: se os fatos já estão dados e são o limite desse fazer, basta que alguém os recolha por meio de um aparelho devidamente programado para isso.

Fazendo dessa premissa uma anedota, o artista e curador catalão Joan Fontcuberta conta que um importante jornal de Hong Kong demitiu seus fotógrafos e distribuiu câmeras fotográficas a entregadores de pizza, que eram mais numerosos e mais ágeis que a equipe profissional que veio a substituir.

Resistências

O fotojornalismo viveu diversas revoluções técnicas e estéticas. Sobreviveu a todas, mas não sem resistência.

Na segunda metade do século 20, muitos profissionais acompanharam com desconfiança a popularização da foto colorida. Eles viam na cor um fetiche adequado aos amadores ou um apelo oportuno à publicidade. Para a fotografia documental, porém, ela portava um excesso paradoxal: "Fotografia colorida é realista demais", disse o crítico A.D. Coleman em sua coluna no jornal The New York Times em 1971.

A fotografia digital chegou com ares de catástrofe. Fotógrafos e teóricos se interrogavam se a imagem captada e desconstruída em códigos binários por um sensor eletrônico ainda poderia ser chamada de fotografia.

Passado o susto, os riscos se confinaram, então, em um lugar mais pontual do processo criativo: a pós-produção, que, com o Photoshop, trazia possibilidades ilimitadas de manipulação. Certo nível de correção de cor, contraste e enquadramento permaneceu aceitável, como já acontecia nos laboratórios analógicos. Mas, de tempos em tempos, nos deparamos com a denúncia de excessos.

Por fim, chegaram os celulares e as redes sociais, recursos que hoje estão integrados à rotina profissional dos fotojornalistas mais ativos, mas que pareciam criar uma concorrência desleal em favor dos amadores até recentemente.

Há um limite que parece ser consensual: no fotojornalismo, não se deve acrescentar ou retirar elementos da cena captada pelo clique. Comentando a imagem de Gabriela Biló, José Henrique Mariante, ombudsman da Folha, citou o Manual de Redação do jornal: "São proibidas adulterações da realidade retratada, tais como apagar pessoas ou alterar suas características físicas, eliminar ou inserir objetos e mudar cenários". Também lembrou que montagens só são permitidas em "imagens de cunho essencialmente ilustrativo". Por isso, alguns posts se referiram a Biló, provocativamente, como "a ilustradora da Folha".

Esse consenso, entretanto, exige concessões: o ângulo, o enquadramento e a escolha do instante podem também incluir ou excluir elementos fundamentais para a leitura que se produzirá da cena. O controle da exposição, do contraste e da cor também podem dar destaque ou decretar a invisibilidade de outros tantos elementos.

Quem defende a pureza de procedimentos do fotojornalismo não só está ciente disso como pensa que essas escolhas são parte fundamental dessa linguagem, mas o clique permanece como fronteira sagrada que separa suas possibilidades criativas dos abusos da pós-produção. Mesmo Biló, ao se defender das críticas que recebeu, fez questão de lembrar que a múltipla exposição não é uma ação de pós-produção: ainda se trata do clique, mesmo qu e sejam dois deles.

A fotógrafa sacou da cartola uma definição de fotojornalismo que desconheço: "Tudo no fotojornalismo que pode ser feito com a câmera digital tem que poder ser feito na analógica, senão não é fotojornalismo". É um modo sintomático de transferir ao equipamento o poder de definir a ética da profissão.

Dizer que toda fotografia envolve manipulação soa, por um lado, um tanto óbvio e, por outro, um jogo retórico que interessa mais aos teóricos que aos fotógrafos. Na prática, quando os procedimentos de produção de uma fotografia são conhecidos, não é difícil distinguir aquilo que é ou não é aceitável dentro dos parâmetros consolidados do fotojornalismo.

No entanto, isso não elimina um problema muito efetivo, lembrado pela jornalista Edilamar Galvão em artigo publicado também na Folha: "A 'captura do instante' que ‘existiu' pode produzir, por algum desses procedimentos [convencionais], uma ilusão de ótica de um fato físico que, a rigor, não existiu". Para quem defende os dogmas do fotojornalismo, isso parece irrelevante: a imagem pode produzir uma leitura enganosa, desde que o instante captado autorize.

Em contrapartida, segue Galvão, uma foto como a de Biló pode muito bem "produzir uma síntese simbólica dos acontecimentos". Caso alguém sugira que não cabe ao fotojornalismo produzir sínteses simbólicas, como justificar a possibilidade de um único instante representar um acontecimento?

Repactuações

Notícias não brotam em árvore: elas são construções sempre baseadas em interpretações que podem ser feitas dos fatos, a partir de procedimentos técnicos e éticos que os profissionais não cessam de debater. Todas as linguagens acolhidas pelo jornalismo estão comprometidas com os fatos, mas nenhuma delas lida de forma tão dogmática com a informação captada.

No texto, os dados e testemunhos colhidos podem ser fragmentados, reordenados, confrontados, sintetizados e acrescidos de análises ou opiniões. No rádio, a tudo isso podem se somar músicas incidentais e efeitos sonoros. Na TV, as captações em vídeo raramente são veiculadas integralmente, porque a montagem é a base de toda a linguagem audiovisual. A ilustração jornalística tem uma enorme liberdade inventiva e, ainda assim, está sujeita à ética do jornalismo.

Nenhum desses procedimentos inviabiliza o compromisso do jornalismo com os fatos. Na fotografia, mais que em qualquer outra linguagem, esse compromisso tem sido medido mais pelo modo de operar a técnica que pela análise do sentido que a imagem produz.

Nas últimas décadas, a fotografia documental se expandiu em muitas direções, se misturou a outras linguagens e ocupou com muita força os espaços dedicados à arte contemporânea. Lembro de Ferreira Gullar reclamando do excesso de realidade na 29a Bienal de São Paulo, em razão da forte presença de filmes e fotografias documentais: "A arte existe porque a vida não basta", disse. De forma espelhada, Gullar operou a mesma exclusão que vimos agora em muitos comentários feitos à foto de Gabriela Biló: "Isso pode ser arte, mas não é jornalismo".

Interessante que muitos dos artistas que levam experimentos documentais para as galerias têm sua formação no fotojornalismo. Em contrapartida, é lamentável que os espaços do fotojornalismo não sejam capazes de acolher as inquietações que eles mesmos ajudaram a produzir. Alguns desses fotógrafos foram levados a experimentações não apenas por insubordinação técnica, mas pelo desejo de aprofundar os compromissos éticos da imagem documental.

Por exemplo: roteirizar previamente a abordagem que se fará do mundo, dando ao gesto do documentarista um caráter quase performático é, muitas vezes, um modo de explicitar ao público a arbitrariedade que sempre envolve o procedimento documental. Poses muito explícitas e claramente negociadas têm sido uma forma de contornar os abusos do "flagrante", sobretudo quando envolve pessoas em situação de vulnerabilidade, que raramente são consultadas a respeito do modo como serão representadas.

Ainda que casos polêmicos possam alimentar manifestações conservadoras, não é verdade que o jornalismo seja refratário às inovações. A mesma revolução digital que instaurou uma crise nesse mercado ofereceu a ele oportunidades de revitalização. Muitas empresas de jornalismo se transformaram em produtoras de conteúdos multiplataforma.

As equipes de fotojornalismo se tornaram bastante enxutas, mas as reportagens que testam soluções inovadoras são mais visuais que nunca: elas trazem fotos, ilustrações, animações, vídeos e interatividade; envolvem programadores, designers e produtores de imagem que transitam por linguagens e procedimentos diversos.

Que estatuto tem a fotografia quando ganha movimento, quando se torna navegável, quando integra uma arquitetura informacional complexa a ser percorrida pelo leitor? Que estatuto tem o fotojornalista quando, além dos cliques rotineiros, é convidado a colaborar com o desenho dessa arquitetura, a planejar e roteirizar narrativas, a escrever textos, a produzir e editar vídeos, a assinar a direção de arte de um produto, a assumir o controle dos processos de pós-produção que aproximam suas imagens da ilustração?

Eu preferia supor que tudo isso ainda merece ser chamado de fotojornalismo. Primeiro, por uma questão etimológica: essa é a palavra que melhor expressa as relações possíveis entre foto e jornalismo. Mas, principalmente, porque o fotojornalismo é o lugar de onde emergem muitas das inquietações que ajudam a renovar o jornalismo.

À medida que essas liberdades sejam concedidas ao fotojornalista, o que irá distinguir suas imagens das fake news? Essa pergunta foi colocada muitas vezes no episódio envolvendo Gabriela Biló. A resposta é bastante simples: ao contrário das fake news, o jornalismo dá transparência a seus procedimentos, revela suas fontes, traz a autoria de suas criações. Há também uma empresa que se responsabiliza pelas informações veiculadas.

Pode ser que, em respeito à tradição, seja prudente preservar a noção de fotojornalismo para as imagens mais convencionais. Isso significa que o fotojornalismo se tornará apenas uma fração das contribuições que a fotografia poderá dar ao jornalismo.

Para tentar dar conta de uma visão mais ampla de todas essas contribuições, algumas nomenclaturas já vêm sendo esboçadas (produção de conteúdo, editoria de imagem, jornalismo visual), mas me parece um desperdício criativo colocar o fotojornalismo como um apêndice desse processo.

Também é verdade que os leitores habituados à tradição do fotojornalismo podem ficar confusos quando se deparam repentinamente com tais inovações. É fundamental haver transparência nesse processo de reformulação dos modos de fazer jornalismo, não apenas por meio de legendas que explicam os procedimentos a cada vez que eles são utilizados. A educação para a imagem é uma responsabilidade a ser exercida de forma contínua e sistemática pelas empresas que vivem do jornalismo.

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