Caso do Dr. Bumbum é reflexo de imensa pressão midiática sobre mulheres

Autores analisam sofrimento feminino na busca do corpo perfeito

Rodrigo Daniel Sanches Norval Baitello Jr.

[RESUMO] A partir da morte de mulher que fez procedimento estético com o médico conhecido como Doutor Bumbum, autores relembram caso da ex-modelo Andressa Urach e  refletem sobre a busca de padrões de imagem corporal.

 

Cada época, cada cultura, cada costume e tradição tem seu próprio estilo, sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e suas crueldades, dizia Hermann Hesse, mas todas aceitam certos sofrimentos como naturais. O caso recente envolvendo a bancária Lilian Calixto, que morreu após um procedimento estético realizado pelo médico Denis Furtado, conhecido como Doutor Bumbum, nos leva a refletir sobre um sofrimento feminino contemporâneo: a busca por um determinado padrão de imagem corporal. 

O que leva uma mulher a promover alterações em seu corpo? Quando as imagens participam invasivamente da vida das pessoas, colocando-se como sucedâneo do mundo real, material, vivo e pulsante, temos uma das dimensões mais intrigantes das imagens: a iconofagia, um processo de devoração das imagens pelos corpos e devoração dos corpos pelas imagens. 

A partir do barateamento dos recursos de reprodução de imagens em grande escala, passou a ocorrer um fenômeno diferente, senão oposto, daquele proposto por Oswald de Andrade e pelo movimento antropofágico de 1928. Da antropofagia criativa, nós, consumidores, passamos para a iconofagia, a devoração indiscriminada de padrões de uma cultura universal de imagens pasteurizadas e homogeneizadas. 

O caso mais emblemático é o de Andressa Urach, ex-modelo e ex-apresentadora de TV. Com o objetivo de alcançar um visual considerado perfeito para ampliar sua exposição na mídia, em menos de quatro anos Urach realizou 14 cirurgias a um custo de mais de R$ 1 milhão em intervenções, clínicas e tratamentos pré e pós-operatórios. 

Em sua autobiografia, “Morri para Viver: Meu Submundo de Fama, Drogas e Prostituição” (Planeta, 2015), Urach revela os artifícios de que lançou mão para se tornar uma “celebridade a qualquer preço”. Um deles foi a aplicação de hidrogel a fim de ampliar e tornear as pernas, uma intervenção estética que permitiria a ela “dormir com coxas finas e acordar com dois supercoxões”.

As cirurgias plásticas nunca estiveram tão presentes e ao alcance como estão agora. É possível modificar, diminuir, esticar, esvaziar (lipoaspiração) ou preencher (inserção de próteses de silicone), alterar o tom da pele (bronzeamento artificial) ou dos pelos (tingimento dos cabelos e dos pelos corporais ou sua retirada). É possível fazer desde pequenas modificações, como alterar tamanho e formato do nariz, até mudanças corporais mais drásticas, como implantes em glúteos e coxas. 

A transformação do corpo em corpo-imagem é alardeada pelos mais diversos aparatos midiáticos como um avanço da medicina estética. Há cada vez mais veículos destinados a mostrar que nosso corpo não corresponde ao modelo imagético vigente e que cada um deve investir tempo e dinheiro para ficar “em forma”. 

O “corpo ideal” almejado por tantas mulheres (famosas ou não) faz parte de um ideal estético que Umberto Eco, em sua obra “História da Beleza”, denominou “beleza da mídia”. Uma beleza “de e para o consumo” (de coisas ou imagens) —que, no caso de Urach, servia como trampolim para sua carreira de celebridade. Um corpo para ser consumido pelos espectadores de programas de TV ou revistas masculinas. Portar uma “beleza midiática” não significa ser saudável, mas ter uma imagem moldada para ser exposta.

Para um determinado nicho, como o universo da moda e das passarelas, reinam corpos magros, seios pouco volumosos, pernas finas e barriga enxuta. Se é para vender um produto destinado ao público das academias, como os suplementos corporais, o corpo-anúncio deve ser forte, com músculos salientes. 

No universo midiático pelo qual Urach circulava e no qual pretendia ampliar sua fama, eram bem-vindos determinados requisitos como seios, coxas e nádegas grandes e cintura fina (Lilian Calixto também optou pelo preenchimento para ampliar suas formas). Um corpo considerado mais atraente resultava em mais exposição, em mais imagens que circulavam pela mídia publicitária e ampliavam exponencialmente sua fama. E, claro, a “fama traria mais dinheiro”, ou ainda mais exposição. 

Cada intervenção estética é feita para criar um corpo que Urach chamou de plastificado. Em um dos preenchimentos a que se submeteu, ela retirou gordura do joelho e injetou nos lábios. “Sonhava ter a boca carnuda como a das atrizes de Hollywood”, conta.

Copiando as “imagens de perfeição” dos corpos femininos da indústria do espetáculo e das celebridades, ela alterou seu corpo num ritmo frenético e perigoso. Em cada operação estética ela materializava o desejo de se tornar cada vez mais parecida com uma imagem idealizada que tem na indústria da fama o seu parâmetro. Cada cirurgia de Urach representava um passo na escalada de sua transformação corporal —cada pedaço de seu corpo alterado pelos bisturis era uma etapa na direção de um corpo-imagem. 

O preenchimento, o esvaziamento e as diversas possibilidades de tornar o formato dos corpos reais semelhante ou o mais próximo possível da beleza midiática são artifícios de uma era iconofágica, de uma era de imagens que valem mais do que os corpos. 

O esvaziamento é o emagrecimento ou a retirada de gordura de uma área específica do corpo para atender a um determinado nicho de exposição midiática (passarelas, publicidade). Mas o preenchimento para obter formas mais volumosas não é aleatório. Não se trata de engordar, apenas, mas de esculpir alguns membros do corpo com formas torneadas, especialmente em áreas de apelo erótico e sexual: seios, coxas, nádegas. 

Quando milhares de garotas veem na mídia atributos esculpidos digitalmente, ou encontram nas celebridades exemplos de formatos corporais a serem seguidos, essas imagens não fazem outra coisa senão devorá-las diariamente. 

A “beleza midiática”, ou seja, tornar-se uma imagem poderosa, arrebata a mulher de forma avassaladora. Se há uma propriedade inerente às imagens, é sua capacidade de condensar e carregar sentidos, emoções e sentimentos, histórias, anseios, sonhos e projetos. Daí emerge seu enorme poder de captura.

A iconofagia não é um fenômeno distante, mas repetitivo e cotidiano. Dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês) revelam que o Brasil realizou 1,22 milhão de cirurgias estéticas em 2015, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. 

As imagens midiáticas de Andressa Urach espalhadas pelos meios de comunicação são um exemplo claro do fenômeno iconofágico. Na ânsia de ser famosa, esculpiu e emprestou seu corpo ao universo midiático, transformando-se em personagem de si mesma para diversas revistas, programas de TV ou sites. Ao tentar retocar constantemente sua própria imagem, ela pagou um preço alto. 

No afã de conseguir um corpo-perfeito, Urach não distinguia mais o corpo biológico do “corpo turbinado”, “plastificado”, que desejava a todo custo alcançar. Para modificar suas formas, ultrapassou limites perigosos, mas sobreviveu. Outras mulheres não tiveram a mesma sorte. 


Rodrigo Daniel Sanches é mestre em comunicação e semiótica (PUC-SP), doutor em psicologia (FFCLRP/USP) e pesquisador da imagem do corpo feminino na mídia e do discurso das novas dietas.

Norval Baitello Jr. é doutor em ciências da comunicação pela Universidade Livre de Berlim, professor de teoria da imagem na PUC-SP e autor de "A Era da Iconofagia".

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