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Demian Melo

Quem é Losurdo, o teórico marxista que refez a cabeça de Caetano

Cantor diz ter reavaliado antiga posição 'liberaloide' após ler as críticas do filósofo italiano ao liberalismo

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Demian Melo

Professor de história contemporânea do bacharelado em políticas públicas da UFF (Universidade Federal Fluminense)

[resumo] Citado por Caetano Veloso como inspiração para reavaliar sua antiga posição “liberaloide” e encarar com mais respeito o socialismo, o filósofo marxista Domenico Losurdo escreveu conjunto de obras dedicadas a demolir a visão mítica do liberalismo, apontando a relação de alguns de seus expoentes com a escravidão e o pouco apreço de muitos deles pela democracia, embora também apoiasse posições políticas autoritárias, como a defesa de Stálin e do regime chinês, avalia professor.

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Bastou uma figura fundamental da cultura brasileira mencionar a revisão da história do liberalismo feita por Domenico Losurdo para que a obra do filósofo comunista italiano despertasse novo interesse público. A imagem de Caetano Veloso afirmando a Pedro Bial sua própria reavaliação da antiga posição “liberaloide” e o respeito pelo socialismo ganhou as redes sociais na semana que passou.

Para parte da esquerda, carente de vitórias, aquilo pareceu a glória —“Finalmente ele está do nosso lado!”—, enquanto que, para o pântano de obscurantismo que se tornou a direita, a declaração seria só mais uma “prova” da ofensiva conspiratória do marxismo cultural no país.

Homem idoso sentado lê um livro que mesmo escreveu sobre a Revolução Russa
O filósofo italiano marxista Domenico Losurdo em visita a São Paulo, em 2017, para lançar o livro "Guerra e Revolução" (ed. Boitempo) - Heleni Andrade/Boitempo

Embora em “Narciso em Férias”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil sobre a prisão de Caetano (e Gilberto Gil) em fins de 1968, o compositor seja categórico ao manifestar sua opção liberal e objeção ao socialismo, na entrevista a Bial ele disse que já não pensa mais assim, agradecendo ao jovem youtuber Jones Manoel pela indicação da obra de Losurdo.

Não fosse o fato de estarmos diante de um governo que busca se identificar como “liberal na economia e conservador nos costumes”, ao mesmo tempo em que investe contra as instituições liberais do Congresso, do Judiciário e da imprensa, essa poderia parecer uma controvérsia fora do lugar.

Mas tanto não é assim que nesta Ilustríssima já se produziu uma polêmica recente entre aqueles que estão buscando comparar o bolsonarismo ao fascismo —apesar do “liberal na economia” — e os que recorrentemente falsificam a história para salvar os liberais.

Teoria e prática do liberalismo

No grande e erudito painel intitulado “O Liberalismo – Antigo e Moderno” (1991), o crítico liberal brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991) define tal tradição como assentada em três pilares básicos: a teoria dos direitos naturais, o constitucionalismo e a defesa da economia de mercado.

O livro atravessa o contexto do Iluminismo, onde situam-se autores matriciais como Locke, Montesquieu, Smith, Kant etc., e, no desenrolar dos capítulos, Merquior apresenta o núcleo central de teorização dessa tradição na ideia de liberdade individual.

O cantor Caetano Veloso, sentado em uma cadeira, em cena do filme 'Narciso em Férias'
O cantor Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em Férias" - Reprodução

Nesse sentido, destaca-se a própria diversidade que habita o liberalismo assinalada por Merquior, comportando desde aquilo que Benedetto Croce chamou de liberismo até a defesa da democracia representativa; do novo liberalismo de John Maynard Keynes ao neoliberalismo de Milton Friedman; daquilo que no ambiente cultural estadunidense é chamado distintamente como liberal e, no mesmo contexto, libertariano.

É preciso lembrar que no mesmo momento em que Merquior publicava seu “Liberalismo”, o colapso dos sistemas burocráticos do Leste Europeu levava intelectuais como Francis Fukuyama a celebrar as realizações liberais da democracia representativa e da economia de mercado.

Na vulgar tese do “fim da história” de Fukuyama, a sociedade capitalista estadunidense figurava como o modelo do estágio final do desenvolvimento humano. Nesse clima, e no mesmo sentido que Norberto Bobbio, Merquior apresentava o regime democrático como um resultado natural dos princípios liberais.

Pois foi justamente contra essa apologia dos vitoriosos da Guerra Fria que Losurdo (1941-2018) escreveu um conjunto de trabalhos dedicados a demolir essa narrativa mítica do liberalismo, dentre os quais se destacam os livros “Democracia ou Bonapartismo” (1993) e “Contra-história do Liberalismo” (2005), já publicados no Brasil.

Mas antes de tratar a avaliação losurdiana da história do liberalismo, cabe situar que o autor faz parte de certa tradição do marxismo italiano que historicamente se dedicou à crítica do pensamento político, uma tradição que remete a Antonio Gramsci (principalmente a partir das leituras problemáticas de Palmiro Togliatti e Luciano Gruppi).

Contudo, no tema em tela, boa parte do trabalho de Losurdo desvia-se, talvez excessivamente, do esforço de, na crítica, encontrar o núcleo racional do discurso liberal —como, a propósito, fizeram Marx e Gramsci— e assume o caminho de demonstração das contradições entre a teoria e a prática dos “campeões da liberdade”.

Nesse sentido, sua contribuição tem um lugar importante, embora talvez seja limitada quando comparada aos trabalhos mais recentes de outros marxistas como Ellen Meiksins Wood e Carlos Nelson Coutinho, de intelectuais feministas como Carole Pateman e Nancy Fraser, e, na matriz foucaultiana, Wendy Brown, Pierre Dardot e Christian Laval, só para citar algumas referências.

Muito além da hagiografia liberal

Em “Democracia ou Bonapartismo”, o foco de Losurdo é problematizar a ideia de que o pensamento liberal se desdobrou naturalmente na democracia. Chama atenção para a oposição de autores como Benjamin Constant e Herbert Spencer à ampliação dos direitos políticos para as classes trabalhadoras, em geral abordadas como “crianças”, à maneira que, de resto, as potências imperialistas trataram os povos coloniais.

O autor lembra que, mesmo na vertente utilitarista, que pode ser mencionada como contraponto democrático no interior do liberalismo oitocentista, como em John Stuart Mill, é possível ler a defesa de filtros sócio-culturais para o direito ao voto e até mesmo “ditaduras pedagógicas” para civilizar os “povos selvagens”.

O ponto mais estimulante da crítica losurdiana, contudo, é sua caracterização da natureza e dinâmica dos regimes liberais contemporâneos. A generalização do sufrágio universal conhecida no último século, por exemplo, foi contrabalançada por restrições e limitações das prerrogativas políticas dos eleitores. Disso deriva sua polêmica tese do “bonapartismo soft”, conceito que elabora para relativizar o caráter democrático dos regimes liberais e apontar as falsas polarizações na sua cena político-eleitoral.

Já na “Contra-história”, Losurdo explora longamente a constrangedora relação dos liberais com a escravidão moderna, algo encontrado explicitamente em John Locke, que, além de defender o instituto, foi acionista da Royal African Company, empreendimento cujo maior negócio era justamente o tráfico transatlântico de africanos escravizados.

E como enquadrar John C. Calhoun, ideólogo do Sul escravocrata, que chegou a ser vice-presidente dos Estados Unidos e cuja estátua foi removida recentemente pelo vigoroso movimento antirracista estadunidense? Lord Acton, o insuspeito liberal inglês do século 19, não tinha dúvidas quanto a considerá-lo um “campeão da liberdade”.

Também são explorados, retomando observações de “Democracia ou Bonapartismo”, o compromisso e as simpatias que liberais como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek tiveram com regimes de exceção no século 20, dos fascismos do entre guerras à ditadura militar de Pinochet.

Neste tópico, Losurdo tem uma reflexão bastante eficiente ao demonstrar como as obras desses economistas austríacos são marcadas pela crítica (não defesa) da democracia.

Assim, vale a pena lembrar que, num livro de 1927 denominado “Liberalismo segundo a Tradição Clássica”, Mises considerou que “não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, são cheios de boas intenções e que sua intervenção, em dado momento, salvou a civilização”.

Já em Hayek, incomparavelmente mais denso que Mises, a crítica da democracia como antessala do comunismo é bastante explícita na sua reflexão tardia, como em “Direito, Legislação e Liberdade”, em que propõe como modelo político a demarquia. Que no início da década de 1980 Hayek tenha declarado à imprensa chilena que “prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo” só surpreende aqueles que não possuem intimidade com suas ideias e com a prática política destes liberais austríacos.

Não deveria também surpreender quem hoje vê o Brasil mais uma vez combinando liberalismo econômico com um ridículo tirano. Afinal, é necessário reconhecer que nossos primeiros liberais foram proprietários de escravos e que na República os liberais figuraram em conspirações golpistas e no apoio à última ditadura militar.

Como já assinalamos acima, Losurdo não é o único responsável pela revisão crítica da história do liberalismo —a rigor, esse tópico sempre fez parte do repertório de questões trabalhadas por tradições teóricas críticas, como o marxismo.

Da mesma forma, a crítica ao socialismo, nem sempre muito iluminada, faz parte do escopo de problemas discutidos por liberais e conservadores. Contra Losurdo, estes podem também ironizar suas posições políticas mais polêmicas (e que também não gozam de minha simpatia, ao contrário), como a tentativa de reabilitação da figura histórica de Stálin e de defesa do atual regime chinês.

Muito ao contrário de Merquior, a maior parte dos liberais de hoje é incapaz de, no sentido inverso, discutir honestamente as ideias marxistas sem o recurso à caricatura. Afinal, “Narciso acha feio o que não é espelho.”

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