Faculdade brasileira deixa conhecimento em segundo plano, dizem autores

Segundo pesquisadores, crise em cursos de humanidades no país se desenha já há um século

Filipe Campello Mariana Prandini Assis

[RESUMO] Para autores, crise em cursos de história, filosofia e letras no Brasil se desenha há um século e resulta, agora, num modelo que se restringe à capacitação profissional, em prejuízo da pesquisa.

 

À tragédia do Museu Nacional ligaram-se dois fatos sintomáticos. Enquanto ainda se dizia que Juscelino Kubitschek fora o último presidente a visitá-lo (mesmo com a informação posterior sobre uma visita de Costa e Silva, em 1968, o fato é revelador da pouca atenção historicamente dada à instituição), uma onda de críticas se dirigia à suposta negligência da administração da UFRJ, seguindo uma crescente tendência de fragilização da universidade pública no Brasil. 

Esse triste episódio nos levou a resgatar uma colaboração recente que fizemos para uma análise comparativa sobre uma alegada crise das humanidades no ensino superior no mundo, a fim de apontar alguns elementos que nos permitem entender o estado de descaso estatal em relação a um bem comum como o Museu Nacional. 

Em outros países, a reflexão sobre uma crise das humanidades no ensino superior aponta para dois importantes processos. Por um lado, a padronização a modelos e critérios de cientificidade predominantes nos campos das ciências exatas e naturais; e, por outro, a adequação a demandas neoliberais de tempo e produtividade científica. 

Aqui no Brasil, a tentativa de diagnosticar uma crise das humanidades no ensino superior aponta para um paradoxo. Diferentemente da tendência em outras partes do mundo, houve uma expansão significativa dos cursos de humanidades e do número de vagas nesses cursos, inclusive com a criação de bacharelados interdisciplinares na área. Essa expansão, contudo, é marcada por características que tornam mais intricado um possível diagnóstico de crise nas humanidades.

Nossa análise do contexto brasileiro mostra que as humanidades não se caracterizam tanto pela retração ou por aquele processo de padronização a partir do modelo das chamadas ciências duras, mas por outras distorções. Constatamos que a fragilidade das humanidades decorre de um modelo tardio e volátil de educação universitária.

Ao contrário de nossos vizinhos latino-americanos, que estabeleceram suas primeiras universidades há mais de 400 anos, os interesses da corte portuguesa voltaram-se sobretudo ao treinamento de profissionais. Quando da Proclamação da República, em 1889, existiam no país apenas 11 instituições oficiais de treinamento profissional, permanecendo até 1930 raros os cursos de humanidades. 

A partir da década de 1960, implantou-se no país um projeto universitário que foi identificado com o modelo proposto por Wilhelm von Humboldt, baseado na tríade ensino, pesquisa e extensão. A noção, contudo, de que a universidade brasileira é inspirada por esse modelo é questionável —ou o que Simon Schwartzman chama de mito. 

O que se viu estabelecido no Brasil foi uma espécie de modelo humboldtiano às avessas, em que predominava uma tendência de reproduzir conhecimento em vez de produzi-lo.

Eunice Durham mostrou que, no desenvolvimento dos projetos de universidade a partir da década de 1930, houve referências também a modelos italianos e britânicos, além da destacada inspiração nas instituições francesas de ensino superior, que influenciou significativamente o desenvolvimento da USP (Universidade de São Paulo), principal centro de formação dos quadros docentes e discentes brasileiros ao longo do século 20. 

De modo geral, também os cursos de humanidades, com currículos profissionalizantes e sem consolidação nos aspectos de pesquisa e inovação, tinham como principal objetivo a formação de uma elite de bacharéis. E cursos como o de filosofia possuíam sobretudo um papel coadjuvante como base de outras formações. 

Apesar das descontinuidades, as sucessivas políticas educacionais de expansão do ensino superior resultaram igualmente em uma ampliação do número de vagas das humanidades. Contudo, uma análise qualitativa evidencia que ela foi caracterizada igualmente por um perfil de “formação/reprodução” de conhecimento.

Primeiro, porque houve uma contínua expansão das instituições privadas de ensino superior, e o papel das humanidades nessas instituições foi definido a partir de uma perspectiva de capacitação profissional. 

Essa característica tornou-se mais aguda com as sucessivas políticas educacionais em que predominaram o chamado “padrão privado”: formação restrita e baixos investimentos em pesquisa. Como resultado das políticas de transferência de recursos públicos para instituições privadas, registrou-se um baixo comprometimento com a qualidade do ensino em instituições rotuladas de “caça-níqueis”.

Segundo, observou-se um processo de “pedagogização” dos cursos de humanidades. A ênfase na qualificação de professores de educação básica passou a balizar largos investimentos, como em projetos de educação a distância, e diversos departamentos voltaram-se ao enfoque do ensino de licenciaturas.

Tal característica de formação distingue-se, por um lado, do sentido mais amplo de formação atrelado ao modelo humboldtiano, e, por outro, de um vínculo mais estreito com a pesquisa, referindo-se fundamentalmente às demandas de qualificação docente.

Constatamos que tais tendências de privatização e pedagogização são sintomas da fragilidade histórica dos projetos educacionais. É particularmente surpreendente que a universidade no Brasil tenha menos de cem anos ou, ainda, que a educação como projeto de governo, com particular atenção à educação básica, só tenha se estabelecido na década de 1990 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394/1996). 

Nesse quadro, a qualificação de professores de ensino médio mostrou-se necessária para suprir uma demanda historicamente reprimida. Já a formação de mão de obra especializada, o amplo desenvolvimento de pesquisa e inovação ainda permanecem como desafios para as políticas educacionais do ensino superior. 

Enquanto em outros países observa-se a padronização das humanidades de acordo com o modelo das ciências da natureza, no caso brasileiro a tendência de adequação das humanidades a tais padrões não se refere tanto ao currículo dos cursos, mas sobretudo aos financiamentos e aos formatos de pesquisas. 

Soma-se a isso uma tendência predominante de enrijecimento da grade curricular, em que se verifica um número excessivo de disciplinas obrigatórias e que já direcionam para uma formação especializada, diferentemente de outros países onde há maior flexibilidade e diversificação das grades curriculares.

O papel das humanidades no ensino superior brasileiro apresenta, portanto, uma face de Jano. Se, por um lado, os números apontam um aumento de cursos e vagas nas humanidades, o perfil desses cursos é marcado pelas características do desenvolvimento tardio da educação brasileira: expansão de um modelo privado com pouca ênfase em pesquisa e voltado para a formação de professores para suprir uma carência de mão de obra. 

As humanidades no Brasil teriam ainda que passar por um processo de consolidação, marcado por uma autonomia que as tornem menos dependentes da volatilidade das políticas educacionais dos governos. 

A defesa de projetos de privatização mostra-se frágil na medida em que apenas reproduz e expande justamente as principais deficiências do ensino superior, sendo avesso àquilo que se exige da universidade: pesquisa e inovação. E não só. Até mesmo no que se refere à função de ensino, o que se observa é a expansão de um ensino de baixa qualidade.

A lógica da privatização —transformando educação em produto a ser vendido e consumido— é viciosa: se expande a partir da deterioração da qualidade de ensino e das condições de trabalho de professores. 

Um ensino superior capaz de oferecer uma formação mais ampla requer uma autonomia que precisamente não pode ser balizada pela lógica de mercado. Se seguisse apenas essa lógica, a quem interessaria um curso de filosofia, letras ou história?

A defesa das humanidades se assenta justamente na necessidade de formação de cidadãos e cidadãs que contribuam na construção de espaços democráticos. A adaptação à lógica de mercado, portanto, mostra-se equivocada para um sistema educacional que nem sequer passou por um estágio de consolidação.

A imagem que talvez melhor ilustre o compromisso com o ensino e a pesquisa no Brasil é a do professor que heroicamente invade as chamas para salvar o fóssil de Luzia. Apesar de todas as limitações, é nas universidades públicas que se concentram as pesquisas e os esforços por um ensino de qualidade, fundamentais para o desenvolvimento do país.

Esperemos que a universidade pública possa ter sua importância reconhecida e salvaguardada, recebendo a atenção que durante décadas foi negada ao Museu Nacional.


Filipe Campello é doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt e professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco.

Mariana Prandini Assis é mestre e doutoranda em política pela New School for Social Research (Nova York).

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