Museu Nacional tem que ficar em ruínas para lembrar descaso, afirma curador

Incêndio é mais uma tragédia anunciada num país em que cegueira social e cultural andam lado a lado, diz autor

Marcio Doctors

[RESUMO]Incêndio no Museu Nacional, no Rio, é mais uma tragédia anunciada num país em que cegueira social e cegueira cultural andam lado a lado, aponta curador, que sugere manter ruínas para lembrar descaso brasileiro em todos os setores.

 

Estou perplexo, revoltado e atônito. Ao mesmo tempo, há um sentimento de dor e impotência e a certeza interna de que já sabíamos que isso poderia acontecer.

Por que somos tão omissos? O que nos leva a fingir —nós, da elite econômica, política e cultural—, que a tragédia da dura e radical realidade socioeconômica não existe como fato vivido, e, por isso, não existe como dor real? Por que brincamos com a dor social, banalizando tudo e nos anestesiando para viver? O resultado: o incêndio criminoso do Museu Nacional.

Criminoso, sim, porque faz parte da tragédia maior que é a de não querer ver. Não querer ver o descaso com a dor humana, que nos acompanha há séculos. Brasil, o país do futuro? Nosso presente e nosso devir: futuro sem passado; passado sem futuro. Um eterno e frágil presente suspenso no ar.

Que equação louca e assustadora é esta em que estamos envolvidos? Um país, uma nação e um povo que se constitui em estado de dor e cegueira, involucrado num mito de alegria salvadora, resultante de uma mistificação pacificadora de miscigenação racial e social, provocada e provocando silêncio.

Que silêncio é esse? Silêncio surdo e abafado que ecoa no ar e que, intempestivamente, é interrompido pelo grito da dor de um incêndio que nos surpreende. Nos surpreende? Como assim? Todos nós de alguma maneira sabíamos.

Foi assim com o MAM-Rio. Foi assim com o Museu da Língua Portuguesa e a Cinemateca Brasileira. Foi assim com a reserva técnica de Hélio Oiticica. Foi assim também com os vários roubos silenciados pela sociedade e pelo tempo, como os da Chácara do Céu, da Biblioteca Nacional, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e tantos outros. Foi assim e é com as queimadas criminosas de nossas florestas.

São todas tragédias anunciadas, que suscitam revolta imediata e depois são acalmadas (silenciadas) pelo esquecimento do convívio insuportável com a consciência plena daquilo que se sabia que poderia acontecer e que, de fato, aconteceu —e nada foi feito.

O estranho não é que tenha acontecido, mas o sentimento e a percepção de que não tenha acontecido antes. Todas as declarações repetem essa mesma cantilena: era uma tragédia anunciada.

Por que nos é insuportável ver o que está à frente de nossos olhos? Por que nos é insuportável saber o que já sabemos? Temos revolta e a camuflamos, uns com o silêncio, outros com a omissão. Por que somos tão omissos? O que nos leva a fingir que a tragédia da dura e radical realidade socioeconômica não existe como fato vivido e, por isso, fingimos que ela não é dor real?

Por que brincamos com a dor social, banalizando tudo e nos anestesiando para viver? Por que os que sofrem a dor da pobreza e da falta de cidadania também parecem conformados? Veem tudo e tudo silenciam.

Por que criamos uma cultura que mistifica a sobrevivência como um ato de orgulho frente às adversidades que o poder político impõe? Por que há valor em sobreviver na miséria e nas dificuldades extremas? Por que precisamos e aceitamos o mito de um povo que se orgulha de ser pacífico, apesar de sabermos que essa não é mais a nossa realidade?

Tenho muito mais perguntas do que respostas, mas tenho uma certeza: a tragédia do incêndio do Museu Nacional revela (tanto quanto a perda inestimável de um acervo de importância incalculável) a tragédia maior que é a omissão de nossos governantes, que se recusam a ver que vivemos uma tragédia social, resultante de 500 anos de espoliação.

É preciso entender definitivamente que o Brasil não pode ser mais um território de saque e também não é mais o país do futuro. Talvez nunca tenha sido. É o país da ilusão.

É uma formação político-econômica e social perversa e irresponsável, que por isso despreza tanto a sobrevivência mínima de seu povo quanto os valores culturais. Cegueira social e cegueira cultural andam lado a lado. É fácil acabar com a cultura, da mesma forma que é fácil acabar com a educação e a saúde. Não é isso que presenciamos?

A perda de um acervo de quase 20 milhões de itens me faz repensar o que é a noção de passado, num país que, ao longo do século 20, alardeou que era o país do futuro e, ao mesmo tempo, foi capaz de destruir seu passado. O que é o passado? Qual o verdadeiro sentido da história e da necessidade de preservarmos nosso passado?

Tenho refletido sobre essa linearidade entre passado, presente e futuro e tenho desconfiado, pelo descaso de nossas autoridades em relação à preservação do nosso patrimônio, de que não há uma relação causal necessária entre esses três momentos do tempo. Ou melhor, há, sim, mas por distorção perversa.

O que foi preservado do passado foi o descaso, cujo resultado presenciamos de maneira emblemática nesse incêndio, que consumiu 200 anos de história, estudo e pesquisa no ano em que se comemoram os 200 anos dessa instituição de referência.

O equívoco está em pensar os bens culturais como coleção de troféus que comemoram o passado, e não como parte de uma política cultural e social mais ampla, que vê nos objetos preservados do passado aquilo que motivou e impulsionou a criação desses mesmos objetos.

Esse sentido que deve ser preservado: o que nesses objetos traduz a potência criativa e inventiva dos homens e das mulheres, na arte, na filosofia, na ciência, enfim, na cultura. Nada disso evidentemente invalida o esforço, muitas vezes heroico, dos profissionais que lutam pela preservação de nossos acervos.

No entanto, não podemos tirar de nosso horizonte que a razão para preservarmos objetos materiais é, tanto quanto ter a presença viva do passado no presente, saber que nós, herdeiros desse patrimônio, temos por missão manter viva a pulsão que motivou sua criação, reinventando sempre a nossa cultura.

museu com vista da cidade do rio
Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dia depois do incêndio que o destruiu - Mauro Pimentel/AFP

E, nesse momento de comoção, em que estamos todos empenhados na reconstrução do Museu Nacional, não notamos que estamos querendo transformá-lo num corpo sem alma (num museu sem acervo como os muitos que foram construídos recentemente).

Proponho, como fez também o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que tenhamos a coragem de conservar as ruínas do que um dia foi o Museu Nacional, transformando-as em monumento ao descaso, para celebrar a lembrança sempre viva do que não se pode mais repetir —evitando surtos de revolta temporária que mobilizam as pessoas e o poder político toda vez que um fato desse acontece, mas que sempre caem no esquecimento.

Proponho que todos os esforços sejam investidos na construção de um novo museu anexo às ruínas e que tenha por missão lembrar a tragédia do descaso em todos os setores da vida brasileira, reunindo o que restou do acervo, e, simultaneamente, investir e dar continuidade ao estudo e à pesquisa de excelência que os profissionais da UFRJ desenvolvem, com enormes dificuldades, em geologia, botânica, paleontologia, arqueologia, antropologia, cultura material dos diferentes povos ameríndios, linguística e todo o rico universo do saber.

Em meio a toda essa tragédia, o que não me deixa silenciar e que salta aos meus olhos das cinzas da destruição é a imagem eloquente do meteorito do Bendegó, símbolo da potência do universo frente à capacidade destrutiva do homem. 


Marcio Doctors, crítico de arte, é curador da Casa Museu Eva Klabin.

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