O que o resto do mundo pode dizer sobre o futuro dos impostos no Brasil

Brasil se beneficiaria de uma melhor integração de suas empresas à ordem internacional

Leonel Cesarino Pessôa

[RESUMO]  Autor argumenta que, com um modelo de tributação cada vez mais distante da experiência estrangeira, o país poderia se beneficiar da adoção de princípios já aceitos universalmente —não apenas em relação à arrecadação federal mas também para uma melhor integração das empresas brasileiras à ordem internacional. 

 

A reforma do sistema tributário foi e continua a ser tema muito presente nessas eleições. No primeiro turno, Alckmin, Ciro e Marina incorporaram, em seus programas, a proposta do Centro de Cidadania Fiscal de criação de um imposto sobre o consumo nos moldes do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) para substituir o PIS, a Cofins, o ICMS, o ISS e o IPI. No segundo turno, o tema persiste.

Há algumas semanas, Mônica Bergamo noticiou nesta Folha que o assessor econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, teria entre seus planos a criação de um imposto único sobre as movimentações financeiras como tem sido proposto pelo professor Marcos Cintra.

De acordo com Marcos Cintra, o novo tributo substituiria inicialmente a cota patronal do INSS de 20% sobre a folha de pagamentos, e esse seria o ponto de partida para uma reforma estrutural na qual outros tributos seriam progressivamente substituídos pelo tributo sobre as movimentações financeiras. Essa proposta contrastaria com a ideia, por ele considerada ultrapassada, do IVA.

Em artigos anteriores, Cintra já havia apresentado seu ponto de vista sobre a proposta de criação de um IVA: este caminho estaria sendo seguido simplesmente porque é usado nos outros países do mundo e a atitude de "sair copiando" refletiria "uma condição de inferioridade do país frente a outras economias".

Nesse mesmo sentido, Everardo Maciel tem escrito que a criação de um imposto sobre o valor agregado federal seria cópia de um modelo em “franca obsolescência”, criado em circunstâncias peculiares e diferentes das nossas, o que atestaria o “servilismo cultural” brasileiro.

Essas críticas tratam de um tema importante no projeto de reforma tributária que pretende introduzir o IVA e que merece ser aprofundado: o aproveitamento da experiência estrangeira. Esse tema não é próprio da tributação sobre o consumo, nem do direito tributário. Não é próprio nem mesmo do Brasil ou da América Latina.

No artigo publicado em 1974 na revista acadêmica The Modern Law Review, sob o título “On Uses and Misuses of Comparative Law”, Otto Kahn-Freund tratou dos assim chamados transplantes jurídicos e deu os contornos contemporâneos do debate em torno desse tema. Seu objetivo foi contribuir para compreender os usos possíveis e os indevidos dos modelos estrangeiros no processo de elaboração legislativa.

Nas discussões que se desenharam a partir da publicação desse texto, Pierre Legrand defendeu que a vinculação dos sistemas jurídicos às culturas e estruturas sociais que estão na sua base impossibilitaria, no limite, os transplantes jurídicos. Ele apresentou uma reformulação contemporânea do ceticismo cultural de Montesquieu: “Ao promulgar uma regra pelas razões que fazem e da maneira como fazem, como produto da maneira como pensam, com as esperanças que têm, ao promulgar uma regra específica (e não outras), os franceses, por exemplo, não estão apenas fazendo isso: eles também estão fazendo algo tipicamente francês e, portanto, estão criando uma modalidade de experiência jurídica que é intrinsecamente deles”.

De forma diametralmente oposta, Alan Watson defendeu a possibilidade dos transplantes jurídicos mesmo sem que se saiba ou que se importe com o contexto das regras no país de origem das normas. A partir da influência expressiva do direito romano, ele procura mostrar que os transplantes ocorreram, apesar de existirem condições sociopolíticas muito distintas nos países de origem e destino.

Seguiram-se várias publicações não apenas sobre a questão empírica da difusão dos modelos jurídicos, mas também sobre as questões normativas de seu sucesso e conveniência. Entre esses textos, merece destaque o artigo de Gunther Teubner “Legal Irritants: Good Faith in British Law or How Unifying Law Ends Up in New Divergences”.

Ele desenvolve os pontos levantados por Watson contra uma posição como a de Legrand: fazia sentido, ao tempo de Montesquieu, a imagem das leis como expressão do espírito de uma nação, inseparável de suas peculiaridades geográficas, sociais, culturais e de seus costumes. E, nesse contexto, assumir-se que uma instituição transplantada carregaria o ‘fardo’ de toda a cultura nacional e concluir-se, assim, pelo perigo das transposições de institutos jurídicos de uns países para os outros.

Uma tendência à uniformização das características gerais dos modos de produção pode ser observada, no entanto, a partir dos últimos séculos. A industrialização, a urbanização, o desenvolvimento das comunicações e mesmo o aumento das possibilidades de locomoção contribuíram para diminuir as distâncias culturais e tornaram as condições de produção em massa, comércio e prestação de serviços muito semelhantes nos diversos países. A globalização e o desenvolvimento da internet nas últimas décadas aceleraram ainda mais esse processo.

Como aponta Teubner, por isso a situação é, hoje em dia, muito diferente daquela vivenciada há dois séculos: “A unidade primária não é mais a nação que expressa seu espírito único em uma lei própria do país, como uma experiência cultural que não pode ser compartilhada por outras nações com diferentes tradições culturais. [...] O processo de globalização criou uma rede mundial de comunicações jurídicas que rebaixam as leis dos estados-nações a meras partes regionais dessa rede que estão em comunicação próxima uma com a outra”.  

No caso da tributação brasileira sobre o consumo, as circunstâncias favoráveis ao aproveitamento da experiência estrangeira são tantas e tão fortes, que elas sugerem um aproveitamento quase que natural dessa experiência.

O princípio básico e geral das propostas de unificação da tributação sobre o consumo é a racionalização do sistema. Um único imposto que incida de forma unificada sobre uma base ampla de bens e serviços é muito melhor que a incidência fragmentada em cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS, COFINS) geridos por três esferas de governo.

Mas para tornar efetivo esse ideal não se trata, assim, de se tomar emprestado um instituto exótico, uma figura estranha à cultura jurídica nacional, mas de se retomar um ideal que já se buscava anteriormente no Brasil. Trata-se de dar continuidade a um processo que se iniciou no início dos anos 1960 e que, nas décadas seguintes, acabou perdendo seu rumo.

A comissão encarregada da reforma de 1965/1967 que modificou a estrutura do sistema tributário brasileiro partiu de duas premissas fundamentais: a consolidação dos impostos idênticos em figuras unitárias, definidas por via de referência as suas bases econômicas e a concepção do sistema tributário como integrado no plano econômico e jurídico nacional.

Como mostra o professor Fernando Rezende, esse quadro de maior racionalidade começou a ser desvirtuado nos anos que se seguiram e, em especial, com Constituição de 1988.

Os temas da tributação e orçamento foram tratados pela Constituinte em comissões distintas: a Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças e a Comissão da Ordem Social. O texto relativo à tributação e ao orçamento na Constituição de 1988 é resultado da falta de sintonia entre as duas comissões, e é nesse texto que está o núcleo do problema tributário brasileiro de hoje.

Como os trabalhos das comissões foram separados, o resultado foi a criação de um sistema que distinguiu duas espécies tributárias: os impostos e as contribuições. E as implicações disso são conhecidas. Temos hoje, por exemplo, o imposto sobre a renda e a contribuição social sobre o lucro líquido incidindo ambos sobre a mesma base.

Mas não era absolutamente necessário que esse fosse o caminho a ser seguido. Não é algo próprio da cultura brasileira possuir um sistema dual de impostos e contribuições.

No caso das propostas de unificação da tributação sobre o consumo, o que chama a atenção não é o fato de recorrer à experiência estrangeira, mas o fato de o Brasil ter se afastado dela nas últimas décadas e destoar tanto —e de maneira tão excepcional— daquelas que são as melhores práticas em todo o mundo.
Numa economia globalizada, trata-se, assim, de se recorrer a princípios universalmente aceitos com todos os benefícios que sua adoção pode trazer, como uma maior e melhor integração do Brasil e de suas empresas à ordem internacional.

As propostas de criação de um IVA estão adotando, como em todos os outros países do mundo, o ‘princípio do destino’ e não o ‘princípio da origem’, como acontece hoje com o ICMS. Isso significa que, nos casos de uma operação mercantil em que o vendedor é de um estado e o comprador é de outro, o imposto passaria a ser recolhido no estado de destino da mercadoria.

Também com relação a esse aspecto, não se trata de uma inovação apresentada fora de contexto, a partir exclusivamente da experiência estrangeira, mas sim de uma alternativa considerada —e vista inclusive como superior de um ponto de vista técnico— desde a primeira implementação do antigo ICM. 

A adoção do princípio do destino já havia se apresentada como melhor alternativa mesmo à época da criação desse tributo. Não teria sido adotada naquela época em razão de condições específicas do momento, entre as quais dificuldade de controle e fiscalização. A adoção do princípio do destino poderia facilitar a sonegação.

Mas a mudança do princípio da origem para o do destino foi sempre proposta desde esse tempo nos diversos projetos de reforma tributária que se sucederam. Ela foi objeto, por exemplo, dos debates da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças na Constituinte responsável pelo texto de 1988.

Se, desde o primeiro momento, o princípio do destino era visto como tecnicamente superior e se o desenvolvimento de novas tecnologias e a informatização dos procedimentos fiscais permitem que os problemas que impediram sua implementação se apresentem, hoje em dia, de forma muito diferente, as razões de sua não implementação não mais subsistem.

Mas os problemas que resultaram da adoção do princípio da origem continuam a existir e precisam ser solucionados. As consequências nefastas da guerra fiscal entre os estados estão sendo pensadas e enfrentadas na proposta de criação de um imposto sobre o valor agregado orientado pelo princípio do destino.

Seja quem for o candidato eleito neste domingo, espera-se que seus planos passem pela proposta que põe a tributação sobre o consumo no Brasil em sintonia com o resto do mundo.


Leonel Cesarino Pessôa é doutor em direito e professor da FGV Direito SP.

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