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Duda Machado, parceiro de tropicalistas, lança antologia

Poeta relacionado, sem adesões, ao concretismo e à tropicália, manteve trajetória consciente do caminho percorrido

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] A antologia "Poesia [1969-2021]", lançada recentemente na coleção Círculo de Poemas, apresenta a escrita poética de Duda Machado. O livro revela às novas gerações um dos poetas brasileiros contemporâneos mais secretos, cuja obra concisa cruzou fronteiras entre a música e a literatura, se relacionou com o concretismo e a tropicália, sem aderir, e se destacou por uma evolução consciente.

Os primeiros versos de "Poesia [1969-2021]" (Círculo de Poemas, 2024), livro recém-lançado do poeta Duda Machado, surgem na canção "Sem Essa", com música de Jards Macalé. "Olha, não é nada disso/ embora eu não saiba dizer mais nada/ mais nada além das coisas/ que sempre ficaram caladas/ olha, não é nada disso", introduz a letra.

Na década de 1970, a poética de Duda em seis canções e nas revistas "Navilouca" e "Polem" se transferiu para os poemas em livros, originando uma obra concisa (sua produção toma 225 páginas da antologia) e pontuada por longos tempos de silêncio.

O poeta Duda Machado em sua casa em Belo Horizonte (MG) - Alexandre Rezende/Folhapress

Organizado pelo poeta e crítico Tarso de Melo, o volume reúne "Zil", de 1977, "Um Outro", de 1989 –incorporado a "Crescente: 1977-1990"—, "Margem de uma Onda", de 1997, e "Adivinhação da Leveza", de 2011. A esse grupo somam-se os seis poemas escritos de 2012 a 2021.

Duda Machado reside em Minas Gerais desde 1998. Professor aposentado de literatura da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), o poeta e tradutor pondera que a leitura de seus poemas em ordem cronológica não revelou aspectos menos aparentes durante a escrita.

"Não fiz nenhuma descoberta neste sentido, e isto me leva talvez à ilusão de ter percorrido esse caminho de modo bem consciente. Afinal de contas, é um caminho breve e isso talvez explique a falta de surpresa ao revê-lo", ele diz às vésperas de completar 80 anos.

Em "Zil", seu primeiro livro, os poemas respondiam à crise dos versos sem esvaziar a possibilidade de invenção no fluxo deles. Seu filtro crítico reconhecia as conquistas dos concretos, ao incorporar a visualidade, como em "cachê/ michê/ clichê", sensível à exploração espacial da página, e retesava a sintaxe em poemas como "Iluminação" –"o sol bate/ sobre a estante/ sobre os livros// bate de tal modo/ que não consigo mais/ distingui-los".

Em 1977, ele chegou a dicções meditadas e avessas ao relaxamento da linguagem dominante naquela década, optando pela sobriedade no diálogo com seu tempo. "Penso que os poemas que escrevi depois do meu primeiro livro manifestam uma libertação em relação à necessidade anterior de me situar ante um horizonte definido por esta ou aquela poética. Desde então, o que prevaleceu foi a experiência de me concentrar no poema que eu descobria ao escrevê-lo", analisa o poeta.

No pós-concretismo, sugere Tarso de Melo, seus poemas firmaram uma independência geracional. "Em ‘Zil’, Duda incorporou questões do concretismo. Ele tem consciência de um desencaixe entre o que queria fazer e a própria geração dele. Se a gente pegar o traço forte dos anos 1970, os poetas não são só pós-concretos, têm uma ponte direta com o modernismo, com Oswald de Andrade."

"Duda faz outro caminho, que incorpora o concretismo, a tropicália, mas inventa outra coisa. Tem uma relação com a tradição que ele inventa. Não é exatamente um poeta dos anos 1970 no sentido mais óbvio, mas é uma das vertentes fortes da época", avalia Melo.

Duda admirou o ensaísmo dos concretistas de São Paulo e se interessou pelos impactos da articulação dos elementos verbais, sonoros e visuais. "Lembro-me que João Cabral de Melo Neto apoiou o movimento da poesia concreta, e era possível também identificar em determinados poemas de ‘Lição de Coisas’, de Drummond, um certo impacto da experiência do poema concreto."

"Alguns poemas desse livro de Drummond, para mim, deixavam ver essa marca, embora isto não tenha significado qualquer tipo de adesão, mas sim uma espécie de resposta. Por sua vez, Mário Faustino sempre manteve um diálogo com os concretos, sem exibir, no entanto, qualquer vínculo com esta poética. Estas foram as respostas que mais me marcaram nessa época, em meio a tantos ataques furiosos. Depois, tanto Haroldo quanto Augusto de Campos, por exemplo, perseguiram, e de maneiras diferentes, um novo modo de construção poética", observa Duda.

Nas décadas de 1950 e 1960, em Salvador, o poeta assistiu a uma confluência de vanguardas no teatro, na dança, na música e no cinema. Ele nasceu na capital baiana, em 3 de maio de 1944, e estudou ciências sociais na Universidade Federal da Bahia, o palco da modernização cultural da província. O jovem leitor de Drummond e Manuel Bandeira ficou em desconcerto ao conhecer um poema de João Cabral de Melo Neto na revista "Leitura".

"Eu nada sabia sobre a obra daquele estranho poeta que não coubera em minha expectativa, e era considerado um grande autor. Fui à procura de seus livros e, em breve, passei a admirá-lo. Mas foi com Murilo Mendes que vivi o caminho mais lento para a aceitação de uma poesia", ele contou em depoimento ao Suplemento Literário de Minas Gerais, em 2016.

Duda era um jovem bem-humorado, afiado na crítica de filmes e sem filiação a movimentos estéticos, à espera do que brotaria de si mesmo, como define seu amigo Fernando Barros, sociólogo e fotógrafo. Dois anos mais jovem, ele iluminou a formação do compositor Caetano Veloso, então estudante de filosofia, que pescava seus exemplares dos "Cahiers du Cinéma" em Salvador.

"O que se chamou tropicalismo não existiria se Duda Machado não me tivesse dito que ‘Acossado’ [de Godard] era melhor e mais importante do que ‘Hiroshima, Meu Amor’ [de Alain Resnais]", disse Caetano a este jornal, em setembro de 2022, evocando a abertura da sensibilidade dos tropicalistas para o universo pop.

Em maio de 1967, ao migrar para o Rio, Duda dividiu um apartamento com Caetano no Solar da Fossa. Naquela altura, continuava a ser um cineasta em gérmen, mas sua projeção inicial veio como letrista. As canções "Hotel das Estrelas" ("dessa janela sozinha/ olhar a cidade me acalma") e "The Archaic Lonely Stars Blues", em parceria com Macalé, conquistaram a voz de Gal Costa em 1970.

"Não tinha nenhuma vontade de ser letrista. O cinema passou a ser uma incógnita, ou melhor, uma realidade prática da qual não sabia como me aproximar. Eu não cultivava nenhuma ilusão sobre a passagem de letras de música para o poema escrito. Ao mesmo tempo, considerava que a especificidade e a diferença relativa entre eles não se confundiam com alguma hierarquia", acentuou em outro trecho do texto autobiográfico.

Além de criar um repertório para Gal, após o exílio político de Gil e Caetano, ele a dirigiu no show "Deixa Sangrar", que continha músicas aproveitadas adiante por Waly Salomão na fase "Fa-Tal" da cantora. Para Gil, fez a letra de "Doente Morena", gravada por Elis Regina.

"Nessa época eu ainda não pensava em escrever poesia. O que me atraía então, acima de tudo, era o desejo de fazer cinema. O que aconteceu é que as letras que fiz me levaram ao projeto de me concentrar na escrita de poemas e de perseguir talvez o que poderia vir a ser uma obra", diz Duda.

"Conheci o Duda em Copacabana através do Waly Salomão. Ele era amicíssimo de Caetano e veio na segunda leva dos baianos. Fez a revista 'Polem' e era muito enfronhado na vida intelectual do Rio", recorda Macalé. "Duda não tinha saco pra viver nesse chamado mundo artístico. Ele sempre foi tímido, retraído, mas muito perspicaz e inteligente."

"Ele tinha outro tipo de linguagem. Uma coisa mais cinematográfica, cortada. Agora, em ‘Sem Essa’, com aquela letra linda de Duda, eu fiz uma melodia tipo pra Roberto Carlos gravar. Falava pro Duda: ‘Vamos ficar ricos, Roberto Carlos vai gravar’. Só que a produção do Roberto da época achou que era muito complicada, não era popular. Ainda vou insistir."

Em momento de insatisfação com as experiências cinematográficas, a escrita de letras originou um desbloqueio e estimulou sua guinada decidida para a arte poética. O antigo fascínio pelo cinema de poesia conferia coerência à transição. Ele não está certo, entretanto, das ressonâncias do aprendizado com imagens em movimento. "Não sei dizer, mas acho que não, embora eu deva acrescentar que sou um grande admirador dos filmes de Jean-Luc Godard."

Sua autonomia envolve a ausência de adesão ao tropicalismo, apesar da amizade do grupo baiano, e as diferenças formais com os contemporâneos da poesia marginal. Ele corrige a minha menção à sua influência sobre os amigos tropicalistas.

"Antes de tudo, eu preciso fazer uma retificação, pois não tive nenhuma influência sobre os tropicalistas, dos quais fui apenas um espectador entusiasmado. Por outro lado, não me interessei nada pelos ‘poetas marginais’, cujo trabalho sempre considerei um vale tudo medíocre. Dessa época, destaco sobretudo a obra de Sebastião Uchoa Leite, cuja precisão antilírica e voltagem irônica sempre admirei e continuo a admirar."

Algo ficou de fora das obras completas para o Círculo de Poemas. Por e-mail, ele reconheceu como seu um texto assinado por Carlos Eduardo Machado no jornal underground Flor do Mal, de 1971. "Massa vertiginosa aqui vale tudo para contar ao mesmo tempo em que nada procura se situar além do espelho dinâmico e incansável pêndulo sempre à margem barca de ocasião do espetáculo onde cada vez se torna mais impossível improvisar ação inércia adentro", diz um dos fragmentos. O texto foi levado à Redação por Torquato Neto, seu amigo desde a juventude na Bahia.

Em 1977, o ano de "Zil", Machado voltou a residir em Salvador. Três anos mais tarde, transferiu-se para São Paulo, onde realizou traduções –de Gustave Flaubert, Marcel Schwob e Ford Madox Ford, entre outros– e trabalhou na editora da USP.

A diversidade temática de sua obra não escondeu a recorrência de poemas reflexivos sobre a memória. Levado à quarta capa da antologia, "Adivinhação da Leveza" é um dos pontos elevados dessa poética da relembrança –"o passado volta ou sequer/ se foi, enquanto se transforma;/ o passado/ ainda está para ser;// entretanto,/ subsiste/ a leveza de lidar/ com o que te vais tornando".

Pela exigência de releitura, seus poemas curtos podem reverberar mais longamente que os poemas extensos na consciência do leitor. "Posso dizer que o poema curto exige forçosamente uma extrema concentração. E é exatamente esse traço que deve ser transportado e reativado no caso do poema mais longo."

Da lavra mais recente, outra vez na órbita da memória, "Reminiscência", "Uma e Outra" e "Lugar da Noite" sondam a finitude e os contrastes da vivência. "Os três poemas têm em comum uma espécie de jogo: são o resultado de um curto-circuito entre um determinado tópico que pode pertencer à experiência de qualquer um e o seu polo contrário, a saber: a reminiscência e o que está por vir; a morte e a vida; a noite e o dia", afirma o poeta.

Assim, lemos no "Lugar da Noite": "A escuridão não tem hora. Ignora/ o prestígio com o qual se reescreve/ o lugar da noite. Vai arrastá-lo/ –exausto– até o sol, até o/ cara-a-cara-com-o-que-você-/ -fez-não-fez, o-que-você-foi-não-foi".

Aos 54 anos, depois de um concurso, Duda Machado assumiu a cadeira de professor de teoria da literatura na UFOP, o que resultou em distanciamento dos círculos culturais de Rio, São Paulo e Bahia. Casado com a psicanalista e tradutora Ana Helena Souza, ele iniciou novos diálogos intelectuais em Belo Horizonte.

"Fui professor em Mariana e tive contato com Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, bem como com alguns poetas mais jovens. Admiro a obra de Júlio Castañon Guimarães, poeta mineiro que conheço e mora no Rio."

"Entre os melhores poetas brasileiros contemporâneos, Duda Machado é, sem dúvida, o mais secreto", escreveu o poeta e crítico Nelson Ascher na orelha de "Crescente". A antologia "Poesia" deve revelar sua obra a poetas jovens, deixando-o menos secreto, e permitir a revisão de seu percurso pelos companheiros de geração.

"Não acompanho mais tão de perto as discussões culturais de hoje em dia, mas acredito que ela possa ser mais aguçada do que na época de minha juventude", diz Duda. "Perto dos 80, o horizonte é curto. Mas dá para dizer que estou sempre na perseguição de algo revelador na experiência do dia a dia, assim como na expectativa de achar algum novo poema."

Poesia [1969-2021]

  • Preço R$ 89,90 (272 págs.)
  • Autoria Duda Machado
  • Editora Círculo de Poemas
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