Cultura permissiva e acesso a pornografia fazem o sexo sair de moda

Conservadores achavam que a revolução sexual levaria à promiscuidade; não foi o que aconteceu

Ross Douthat

[RESUMO]“Admirável Mundo Novo” antecipou um aspecto essencial da vida social moderna: a forma pela qual a libertinagem foi domesticada e usada para estabilizar a sociedade, com mediação da tecnologia e das drogas.

 

Há momentos na vida de qualquer colunista em que ele se preocupa com ser repetitivo demais, previsível demais, e com a possibilidade de estar despertando em seus leitores o equivalente à reação de um colega ao ouvir J.R.R. Tolkien lendo em voz alta uma de suas sagas da Terra-média: “Outra [palavrão] de elfo não!”.

A publicação, na mesma semana, de um ensaio na revista Politico sobre como os conservadores perderam a guerra cultural para a pornografia e de uma reportagem de capa na revista Atlantic sobre o declínio das relações sexuais me causaram preocupação sobre essa possibilidade —a de que, se eu combinar os dois artigos para desenvolver um argumento sobre a decadência da nossa cultura, meus leitores vão achar o texto um tanto previsível, um tanto, sei lá, a mesma coisa outra vez.

Mas, como no caso de Tolkien e seus amados elfos, perseverarei, porque os artigos merecem recomendação. No caso da Politico, Tim Alberta conta a história de como a internet essencialmente matou o movimento de combate à pornografia, ao torná-la tão onipresente e ao generalizar seu uso a tal ponto que tentar regulamentá-la de qualquer modo significativo seria como tentar dar ordens a uma maré.

Já o exame por Kate Julian, na Atlantic, daquilo que ela define como “recessão sexual” contempla uma realidade surpreendente na vida do Ocidente sexualmente liberado: o fato de que, a despeito de (ou por causa de?) nossa cultura permissiva e da abrangente disponibilidade de entretenimento que atende a toda forma de desejo sexual, o ato sexual em si de certa forma saiu de moda, ao lado de seus acompanhamentos habituais (relacionamentos, casamento, filhos), e o onanismo e o celibato em longo prazo estão em ascensão.

O que os dois jornalistas estão descrevendo é um panorama que quase ninguém esperava para a pós-revolução sexual —com uma notável exceção, que será discutida abaixo.

Os conservadores não esperavam que isso acontecesse porque acreditavam que a revolução sexual conduziria inevitavelmente ao caos social —que se você declarasse que o consentimento é o único padrão de moralidade sexual e encorajasse os jovens a definir a ideia de realização em termos libidinais, haveria não só promiscuidade mas uma série de outras consequências secundárias sombrias: uma disparada no número de gestações na adolescência e abortos, uma alta nos casos de estupro e agressão sexual, maior incidência de crimes entre homens jovens e sem filhos... Basicamente tudo que parecia estar acontecendo nas décadas de 1970 e 1980, quando a cruzada contra a pornografia que Alberta descreve atingiu seu apogeu.

Mas muitas dessas tendências sociais sombrias se estabilizaram ou reverteram na década de 1990 e, em lugar de transformar adolescentes em estupradores, a vitória da cultura pornográfica, facilitada pela internet, talvez tenha tido o efeito oposto.

A incidência de estupros e de violência sexual na verdade caiu com a difusão do acesso à internet, o que sugere que os prazeres do reino online servem ou como substitutos para práticas sexuais predatórias ou como uma espécie de tranquilizante sexual —ou ambos [o autor se baseia no estudo “Pornography, Rape, and the Internet”, feito por Todd Kendall, do departamento de economia da Clemson University, em 2006. O trabalho mostra que, nos EUA, quanto maior o acesso da população à internet, menor o número de estupros. Os dados apontam que um aumento de 10% no acesso à rede pode provocar queda de 7,3% dos estupros notificados]. 

E esse efeito tranquilizante parece se estender para além do aspecto predatório e chegar à conduta normal de relacionamentos sexuais, porque a combinação entre Netflix, Tinder, Instagram e masturbação é crucial para a história que Julian conta na Atlantic sobre o declínio do sexo.

Assim, a ordem permissiva e pornográfica que surgiu após a revolução sexual parece mais estável agora do que os conservadores pessimistas esperavam 30 anos atrás, e não há um colapso social iminente aguardando no horizonte.

Mas os progressistas otimistas também estavam errados —errados em esperar que a nova ordem criaria avanço claro na satisfação sexual, errados em antecipar uma integração saudável entre o desejo sexual e os vínculos românticos, errados em presumir que um relacionamento feliz e igualitário entre os sexos estava à espera assim que o puritanismo fosse rejeitado e a repressão deixada de lado.

Em lugar disso, conseguimos estabilidade social, em parte por meio da substituição do sexo por masturbação, pela troca de interações no mundo real por entretenimento virtual e pela crescente alienação entre os sexos (“tenho 33 anos, passei a vida toda namorando e o fato é que as mulheres são melhores, simplesmente melhores”, disse uma mulher heterossexual entrevistada para a reportagem de Julian).

Essa não é a utopia sexual positiva profetizada por Wilhelm Reich e Alex Comfort e mais tarde adotada pela terceira onda do feminismo. É um reino de prazeres privados furtivos e isolamento social duradouro, de paz social comprada por meio de esterilidade, de sexo virtual como ópio de massas que de outras formas continuam sexualmente insatisfeitas.

E a única pessoa que percebeu o que viria foi Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”, a distopia essencial de nossa era, que capturava o traço mais importante da vida social moderna: a forma pela qual a libertinagem, no passado uma força poderosamente desordenadora, foi domada, domesticada e usada para estabilizar a sociedade, com a mediação da tecnologia e das drogas.

É verdade que nenhum de nossos produtos farmacêuticos se equipara exatamente ao “soma”, a “droga perfeita”, como descreve um de seus promotores no livro de Huxley, “com todas as vantagens da cristandade e do álcool” mas sem ressaca ou culpa religiosa. (Nossas versões são mais perigosas e têm distribuição menos equitativa.) 

Mas nossas formas hedonistas de realidade virtual estão se aproximando dos “feelies” pornográficos de Huxley e de seu “Sucedâneo para Paixões Violentas” (“todos os efeitos tônicos de assassinar Desdêmona ou ser assassinada por Otelo sem qualquer das inconveniências”). E com base em muitos indicadores sociais da era da internet, essas formas de realidade virtual cada vez mais desempenham um papel tranquilizante e estabilizador.

Huxley capturou com perfeição, acima de tudo, a maneira pela qual uma sociedade suficientemente decaída ao hedonismo perderá até mesmo a linguagem necessária a descrever claramente, por exemplo, por que “um ovo de silicone lubrificado, de uso único, que os homens enchem de lubrificante e dentro do qual se masturbam” (uma recente inovação japonesa mencionada por Julian) talvez não seja um desdobramento positivo.

As pessoas que tentam combater a pornografia, no artigo de Alberta, ou as pessoas que batalham para articular seus descontentamentos sexuais e românticos, no artigo de Julian, estão tentando encontrar o caminho de volta a uma visão de mundo que volte a levar a sério o florescimento humano e a virtude moral. 

Mas elas são parte de uma sociedade que em muitos casos reconhece apenas argumentos apresentados em forma de contraposição entre prazer e danos e que, de alguma forma, incorporou a lógica de Mustapha Mond, um dos controladores da civilização no mundo de Huxley: “Castidade quer dizer paixão, castidade quer dizer neurastenia. E paixão e neurastenia querem dizer instabilidade. E instabilidade significa o fim da civilização. Não se pode ter uma civilização duradoura sem muitos vícios prazerosos”.

Vícios prazerosos e estabilidade: com alguma ajuda da tecnologia, essa é a cultura sexual que estamos desenvolvendo. A única boa notícia, e a melhor prova de que talvez ainda possamos escapar à armadilha de Huxley, é que retemos aspirações genuinamente humanas em grau suficiente para que estejamos insatisfeitos com ela.


Ross Douthat é colunista do New York Times desde 2009 e autor de “To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism” (Simon & Schuster).

Texto originalmente publicado no New York Times; tradução de Paulo Migliacci.

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