Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Relação de Bolsonaro com EUA tenta repetir Castelo Branco, diz professor

Para autor, é pouco provável que aproximação semelhante à da ditadura funcione agora

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[RESUMO]  Na ditadura militar, Castelo Branco direcionou a política externa rumo à aproximação com os EUA; autor avalia quais são as chances de estratégia semelhante se repetir sob Jair Bolsonaro.

 

São muitos os sinais de que a administração Bolsonaro fará uma guinada na política externa brasileira. Um dos pilares dessa mudança está na construção de uma relação especial com os Estados Unidos de Trump, afastando o país dos Brics. A nomeação de Ernesto Araújo como ministro das Relações Exteriores e suas primeiras declarações e ações como chanceler são evidências claras nesse sentido.

Se essa guinada ocorrer, não será algo inédito na história brasileira. No início da ditadura militar, o governo Castelo Branco (1964-67) protagonizou movimento muito parecido, interrompendo a política externa independente de seus antecessores, Jânio Quadros e João Goulart, e aproximando o país dos Estados Unidos. Um olhar sobre esse período pode lançar luz sobre o futuro das relações bilaterais entre Brasília e Washington.

bolsonaro e pompeo
O presidente Jair Bolsonaro em encontro com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo - Reuters

Para além da agenda de política externa, o processo que culminou com a eleição de Bolsonaro apresenta semelhanças com o contexto de ascensão dos militares em 1964. 

Tal como hoje, o Brasil de então enfrentava sérios problemas econômicos e grave desequilíbrio nas contas públicas. Além disso, em ambos os casos viu-se um governo ultraconservador assumir o poder com um discurso de combate à corrupção e ao “comunismo”, tendo significativo apoio da sociedade, e em defesa de valores ocidentais tradicionais, como família e cristandade.

Apesar dos pontos em comum, no cenário doméstico, a natureza da crise econômica é distinta. Inflação e desequilíbrio externo eram centrais à época, ao contrário de hoje, quando há uma recessão histórica. Além disso, no governo Goulart houve um nível inédito de manifestações sociais com foco em reformas redistributivas, e não somente contra a corrupção e o sistema político. 

E, claro, os militares tomaram o poder por meio de um golpe em 1964, enquanto Bolsonaro virou presidente pela via eleitoral.

No campo internacional, os contrastes também são marcantes. Com a Revolução Cubana de 1959, a Guerra Fria tornou-se uma realidade nas Américas. Apesar disso, Moscou tinha peso pequeno na economia latino-americana —Washington era o principal parceiro comercial e de investimentos no hemisfério. Hoje, por outro lado, se não existe mais Guerra Fria, a presença de uma potência externa ao continente é paradoxalmente maior. Desde 2009, Pequim virou o maior parceiro comercial do Brasil e vem se tornando o nosso mais importante investidor.

Essas diferenças devem nos alertar, mas não impedir de tecer paralelismos entre esses dois contextos. Mesmo que a administração Bolsonaro não seja um governo militar, membros das Forças Armadas, especialmente do Exército, terão influência sobre sua gestão. E isso impactará as políticas doméstica e internacional do país, com influência direta sobre a abordagem diante de Washington.

O governo Castelo Branco começou implementando uma série de reformas institucionais, como a criação de um Banco Central, a regulação de mercados e ativos financeiros e a flexibilização de direitos do trabalho. O novo regime também aplicou duras políticas de estabilização, além de reduzir a proteção a setores econômicos domésticos e privatizar algumas empresas estatais.

Internacionalmente, nossa política externa foi marcada por dois aspectos relacionados: de um lado, o Brasil recuou de sua posição globalista, retirando apoio a uma agenda pró-Terceiro Mundo; de outro, como já dito, virou um aliado próximo dos EUA.

Logo após o golpe de 1964, Brasília cortou relações diplomáticas com Cuba. Um ano depois, prestou apoio decisivo a Washington na OEA (Organização dos Estados Americanos), legitimando a invasão à República Dominicana —a primeira intervenção direta dos Estados Unidos em um país do continente desde o lançamento da Política de Boa Vizinhança de Franklin D. Roosevelt.

Além desse apoio, Brasília contribuiu significativamente com tropas para a força-tarefa da OEA em Santo Domingo e iniciou negociações com a administração Lyndon Johnson para o envio de soldados ao Vietnã, o que acabou não se concretizando.

Em pouco tempo, porém, o quadro mudou. Em 1967, com Costa e Silva, houve uma clara reversão nas políticas doméstica e internacional do regime militar, o que atingiria o ápice durante a administração Ernesto Geisel, em meados dos anos 1970.

No front doméstico, a política econômica liberal não entregou o prometido crescimento —nem mesmo o controle da inflação—, provocando fortes críticas do empresariado. Com o tempo, a meta de contenção inflacionária daria lugar a uma política econômica expansionista, com foco no crescimento econômico, na industrialização e na diversificação de exportações.

Internacionalmente, a transformação não foi menos intensa. O Brasil apoiou o movimento terceiro-mundista, priorizando a divisão Norte-Sul (países ricos e pobres) em vez da divisão ideológica Leste-Oeste. Brasília se tornaria uma das líderes do Grupo dos 77 nas Nações Unidas, cobrando ações dos países ricos para combater o subdesenvolvimento. Somados a isso, o comércio e os investimentos entre o Brasil e o bloco soviético ganhariam força.

No mesmo embalo, as relações bilaterais com Washington se deterioraram. Duros e longos conflitos comerciais emergiram entre os dois países, envolvendo o acesso a bens manufaturados brasileiros no mercado norte-americano, especialmente café solúvel, sapatos e têxteis.

As reclamações diante do que Brasília considerava negligência no campo de equipamentos militares viraram constantes, culminando no rompimento de um acordo militar bilateral de 25 anos em 1977. Negociações difíceis sobre o programa nuclear brasileiro também trouxeram animosidades e mútua desconfiança, trilhando o caminho para um acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha Ocidental, contra a vontade norte-americana.

Em suma, para onde quer que se olhasse no final dos anos 1970, as relações Brasil-Estados Unidos tinham atingido uma baixa histórica. Brasília havia passado de uma das maiores aliadas norte-americanas pós-1964 a uma clara adversária em múltiplas frentes. Como isso foi possível em tão pouco tempo?

Há inúmeras variáveis interagindo para explicar essa rápida e intensa crise nas relações bilaterais. Não apenas a Guerra Fria global havia mudado drasticamente entre os anos 1960 e 1970 com a “détente” norte-americana-soviética, mas também o crescimento espetacular da economia brasileira no período trouxe à tona conflitos econômicos que provavelmente não teriam ocorrido caso o Brasil continuasse a ser apenas um exportador de commodities.

Há, porém, um outro elemento. Segmentos das Forças Armadas viam em um alinhamento com os Estados Unidos uma forma de reconstruir a relação especial que os dois países tiveram no passado, especialmente durante a Segunda Guerra, e que havia resultado em inquestionáveis benefícios para ambos.

À época, o Brasil não só ficou com a maior porção da ajuda militar norte-americana para a América Latina mas também obteve um empréstimo do Exim Bank (agência americana de crédito à exportação) que permitiu a construção de sua primeira siderúrgica integrada.

Em contraste, apesar de Washington ter dado significativo apoio econômico ao regime militar em seus primeiros anos, o alinhamento do governo Castelo Branco com os Estados Unidos não produziu os mesmos resultados. Não se construiu uma parceria especial, nem quando Nixon e Kissinger, anos depois, tentaram estabelecer relações próximas com países-chave ao redor do mundo, inclusive com o Brasil.

Na perspectiva dos militares brasileiros, Brasília não poderia continuar a ser uma aliada leal dos Estados Unidos sem que Washington retribuísse à altura.

Estaria Jair Bolsonaro fadado a trilhar caminho semelhante? À luz da história, é plausível supor que a guinada pró-Estados Unidos pretendida pelo novo governo só se tornará sustentável se duas condições forem preenchidas.

Em primeiro lugar, a agenda econômica de Paulo Guedes precisaria dar frutos, trazendo o crescimento de volta. Isso manteria grupos nacionalistas e estatistas das Forças Armadas sob contenção —elementos que, no passado, puxaram o Brasil para uma política externa mais globalista e pragmática.

E, em segundo, Washington teria que retribuir uma eventual política pró-Estados Unidos do Itamaraty por meio não só de benefícios materiais (acordos de comércio, ajuda econômica e militar, cooperação técnico-científica) mas também pelo reconhecimento do status especial do Brasil no mundo, principalmente na América Latina.

É difícil prever se a primeira condição será satisfeita. Apertos de cinto são sempre difíceis. A questão é determinar se os impactos negativos de medidas de contenção de gastos e de potencial elevação tributária serão compensados pelo ganho em confiança por atores nacionais e internacionais. Se sim, há espaço para crescimento sem grandes riscos inflacionários, valendo-se da atual capacidade ociosa da economia. Ainda assim, as incertezas são grandes.

A segunda condição, mais fácil de prever, dificilmente se cumprirá. A perspectiva de “América primeiro” da presidência Trump vai contra uma possível abordagem de parceria especial de Washington com Brasília, da mesmo forma que os Estados Unidos de hoje não colocam a América Latina como prioridade em sua política externa. E não há nada que indique mudança no futuro, mesmo considerando uma deterioração extrema da crise na Venezuela.

Somando tudo, ainda que Bolsonaro e o chanceler Araújo perseverem na retórica de alinhamento com Trump, na prática a tendência é que Brasil e Estados Unidos continuem do jeito que estão nos próximos anos —ou seja, mantendo apenas relações cordiais e discretas, mas nada próximas, muito menos especiais.


Felipe Loureiro é professor do Instituto de Relações Internacionais da USP.

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