Empresários embarcam no nazismo em livro francês premiado; leia

'A Ordem do Dia' narra flerte de industriais com Hitler logo antes da Segunda Guerra Mundial

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Éric Vuillard

[SOBRE O TEXTO] O trecho compõe o livro “A Ordem do Dia”, best-seller vencedor do Goncourt, o mais importante prêmio literário francês, em 2017. Na trama situada às vésperas da Segunda Guerra Mundial, grandes empresários alemães decidem apoiar a ascensão de Hitler ao poder. A obra sai no Brasil pelo selo Tusquets no final de julho.

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Com a idade, seus lábios finos começam a desenhar uma feia lua crescente de ponta-cabeça. Ele tem um ar triste e inquieto; gira mecanicamente entre seus dedos um belo anel de ouro, através da neblina de seus ânimos e de seus cálculos —e pode ser que, para ele, essas palavras tenham um só significado, como se tivessem sido lentamente imantadas uma à outra.

De repente, as portas rangem, as tábuas do chão rilham; conversam na antessala. Os vinte e quatro lagartos se levantam sobre suas patas traseiras e ficam bem eretos. Hjalmar Schacht engole saliva, Gustav arruma o monóculo. Atrás da porta, ouvem-se vozes abafadas e, depois, um assobio. E enfim, o presidente do Reichstag penetra sorrindo no recinto; é Hermann Goering. E isso, bem longe de nos surpreender, no fundo não passa de um acontecimento bastante banal, rotineiro. No mundo dos negócios, as lutas entre partidos não são nada. Políticos e industriais costumam se frequentar.

Goering deu então a volta na mesa, com uma palavra para cada um, segurando cada mão com um aperto indulgente. Mas o presidente do Reichstag não veio somente acolhê-los, ele rosna algumas palavras de boas-vindas e logo evoca as próximas eleições de 5 de março. As vinte e quatro esfinges o ouvem atentamente. A campanha eleitoral que se anuncia é determinante, declara o presidente do Reichstag, é preciso acabar com a instabilidade do regime; a atividade econômica exige calma e firmeza. Os vinte e quatro senhores balançam religiosamente a cabeça. As velas elétricas do lustre piscam mais que antes. E, se o partido nazista conseguir a maioria, acrescenta Goering, estas eleições serão as últimas pelos dez anos seguintes; e até mesmo –acrescenta com uma risada– por cem anos.

Um movimento de aprovação percorreu o ambiente. No mesmo momento, houve alguns barulhos de portas e o novo chanceler enfim entrou no salão. Aqueles que nunca o tinham encontrado estavam curiosos para vê-lo. Hitler estava sorridente, descontraído, nada do que imaginavam, afável, sim, até amável, bem mais amável do que teriam acreditado. Houve, para cada um, uma palavra de agradecimento, um aperto de mão vigoroso. Uma vez feitas as apresentações, cada um retomou seu lugar em sua poltrona confortável. Krupp se encontrava na primeira fileira, cutucando com um dedo nervoso seu minúsculo bigode; logo atrás dele, dois dirigentes da IG Farben, mas também von Finck, Quandt e alguns outros cruzaram doutamente as pernas. Houve uma tosse cavernosa, uma tampa de caneta fez um minúsculo clique. Silêncio.

Eles ouviram. O cerne da proposta se resumia a isto: era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa. O discurso durou meia hora. Quando Hitler terminou, Gustav se levantou, deu um passo à frente e, em nome de todos os convidados presentes, agradeceu a ele por ter enfim esclarecido a situação política. O chanceler deu uma rápida volta antes de ir embora. Todos o parabenizaram, mostraram-se corteses. Os velhos industriais pareciam aliviados. Assim que ele se retirou, Goering tomou a palavra, reformulando energicamente algumas ideias, depois evocou de novo as eleições de 5 de março. Seria uma ocasião única de sair do impasse em que se encontravam. Mas para fazer campanha, era preciso dinheiro: ora, o partido nazista não tinha mais um tostão, e a campanha eleitoral se aproximava. Nesse instante, Hjalmar Schacht se levantou, sorriu para a assembleia e proferiu:

— E agora, senhores, ao caixa!

Esse convite, certamente pouco cavalheiresco, não tinha nada de novo para esses homens; eles estavam acostumados com os molha-mãos e as ajudinhas. A corrupção é um item incompreensível no orçamento das grandes empresas, tendo vários nomes: lobby, doação, financiamento de partidos. A maioria dos convidados verteu em seguida algumas centenas de milhares de marcos, Gustav Krupp doou um milhão, Georg von Schnitzler doou quatrocentos mil e, assim, recolheram uma soma considerável. Essa reunião de 20 de fevereiro de 1933 –em que se podia ver um momento único da história patronal, um compromisso extraordinário com os nazistas–, para os Krupp, os Opel, os Siemens, não passa de um episódio muito comum da vida dos negócios, uma banal angariação de fundos. Todos sobreviverão ao regime e financiarão no futuro muitos partidos de acordo com a performance.

Mas para melhor compreender a reunião de 20 de fevereiro, para alcançar sua essência, é preciso a partir de agora chamar esses homens pelo nome. Não são mais Günther Quandt, Wilhelm von Opel, Gustav Krupp, August von Finck que estão lá, neste fim de tarde, em 20 de fevereiro de 1933, no palácio do presidente do Reichstag; são outros os nomes que devem ser pronunciados. Porque Günther Quandt é um criptônimo, dissimula algo bem diferente daquele homem gordo que alisa os bigodes e se mantém gentilmente em seu lugar, em volta da mesa de honra. Atrás dele, justo atrás dele, se encontra uma silhueta muito mais imponente, sombra protetora, tão fria e impenetrável quanto uma estátua de pedra. Sim, sobrepondo-se com toda sua força, feroz, anônima, à figura de Quandt e dando-lhe esta rigidez de máscara –mas de uma máscara que colaria em seu rosto melhor que sua própria pele–, adivinha-se sobre ele: Accumulatoren-Fabrik AG, a futura Varta, que conhecemos, já que as pessoas jurídicas têm seus avatares, como as divindades antigas, que tomavam diversas formas e, ao longo do tempo, incorporavam outros deuses.

Esse é, portanto, o autêntico nome de Quandt, seu nome de demiurgo, já que ele, Günther, é apenas um montinho de carne e ossos, como você e eu, e depois dele seus filhos e os filhos de seus filhos se sentarão no trono. Mas o trono, esse permanecerá, quando o montinho de carne e ossos apodrecer na terra. Assim, os vinte e quatro não se chamam nem Schnitzler, nem Witzleben, nem Schmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem Heubel, como a certidão de nascimento nos incita a crer. Eles se chamam BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. É por esses nomes que nós os conhecemos. Nós os conhecemos muito bem. Eles estão lá, no meio de nós, entre nós. São os nossos carros, nossas máquinas de lavar, nossos produtos de entretenimento, nossos rádios-relógios, o seguro da nossa casa, a bateria de nosso relógio de pulso. Eles estão lá, em todos os lugares, sob a forma de coisas. Nosso cotidiano é o deles. Eles cuidam de nós, nos vestem, nos iluminam, nos transportam pelas estradas do mundo, embalam nosso sono. E os vinte e quatro homens presentes no palácio do presidente do Reichstag, neste 20 de fevereiro, não passam de mandatários, o clero da grande indústria; são os sacerdotes do deus Ptá. E se mantêm lá, impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular nas portas do Inferno.


Éric Vuillard é um escritor e cineasta francês.

Tradução de Sandra Stroparo, professora de literatura brasileira e teoria literária na UFPR.

Ilustração de Manuela Eichner, artista visual.

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