Africanos contam vida em São Paulo, onde ampliam mosaico da imigração

Moradores recentes da cidade, imigrantes relatam suas impressões e posam para Bob Wolfenson

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Naief Haddad fotos Bob Wolfenson

[RESUMO] A presença crescente de africanos consolidou nos últimos anos um novo mosaico da imigração em São Paulo. Ouvidos pela reportagem, alguns deles contam suas histórias e falam sobre as vantagens e os problemas de viver na maior metrópole do país.

O fenômeno não é novo —e por isso mesmo já consolidou uma cena que enriquece o vasto mosaico da imigração em São Paulo.

A presença de africanos transformou-se em realidade na paisagem humana, cultural e econômica da cidade. Quem são as mulheres e os homens que deixaram os seus países na África para viver na maior metrópole brasileira? São refugiados ou vieram de forma voluntária? Onde trabalham? O que pensam sobre os paulistanos?

Faltam dados públicos recentes sobre esses fluxos para a capital paulista —não só em relação aos africanos, mas aos imigrantes de modo geral. Para responder as perguntas acima, obviamente sem pretensão de um levantamento com rigor estatístico, a reportagem rodou pelo centro de São Paulo para ouvir africanos que adotaram a cidade —que posaram para o fotógrafo Bob Wolfenson.

Desnecessário dizer que, em maior ou menor grau, todos foram vítimas de racismo. Quase sempre apreciam a cidade pelas oportunidades, principalmente em comércio, serviços e cultura, mas rejeitam alguns traços comportamentais. Apontam, por exemplo, excesso de permissividade. E são enfáticos em salientar a ignorância sobre os 54 países que compõem seu continente de origem. “Muitos ainda acham que a África é um só país”, diz o ator e modelo Vensam Iala, de Guiné-Bissau. 

Vensam Iala, 29
Guiné-Bissau 

“Eu me descobri negro no Brasil”, conta Vensam Iala, que nasceu na pequena Guiné-Bissau, país da África ocidental com cerca de 1,6 milhão de habitantes. “Vim de uma sociedade em que não existe racismo estrutural, como aqui. Como a grande maioria da população é negra, essa não era uma questão para mim.”

O Brasil é para Iala a terra em que fez muitos amigos. Todavia, é também onde coleciona casos de discriminação. Não era o que esperava. O país exercia sobre ele um enorme fascínio, muito em virtude do futebol. 

Atacante habilidoso na adolescência, adorava ouvir seu pai descrever as proezas de Pelé. Aos 17 anos, porém, fraturou a clavícula, o que impediu a profissionalização como atleta. 

O encanto pelo país se manteve. Graças a um convênio entre Brasil e Guiné-Bissau, Iala se mudou em 2010 para Assis, no interior paulista, para cursar letras na Unesp. A língua não era entrave —seu país também foi colonizado pelos portugueses. 

Mal havia chegado a Assis, foi a uma papelaria comprar lapiseira. A vendedora não disse o valor, só respondeu que era muito cara. Iala insistiu. A moça voltou a dizer que o preço era alto. Ele comprou a lapiseira e jamais esqueceu a resistência da balconista. Começava a conhecer o racismo brasileiro.

Nessa época, ganhou o apelido de Angolano. “Eu me cansava de falar que era de Guiné-Bissau. Mas criaram essa concepção. No Brasil, todo africano é angolano.”

Concluído o curso de letras, Iala não conseguiu emprego na área. O fato de não ser naturalizado o impede de participar de concursos públicos —após nove anos no Brasil, ainda não obteve a cidadania.

Iala mudou-se para São Paulo, onde passou a dar aulas de português voluntariamente para outros imigrantes. Dedicou-se ainda à carreira de modelo, que foi impulsionada em dezembro de 2018, quando o guineense de 1,86 m de altura ganhou o primeiro concurso Mister África Brasil. 

Na mesma competição, Samira Nancassa, também de Guiné-Bissau, foi escolhida como Miss África. 

Agora a prioridade de Iala é outra. Aos 29 anos, ele mantém as atividades como modelo, mas quer se aprimorar como ator. Participou recentemente das filmagens de “Pedro”, produção sobre dom Pedro 1º dirigida por Laís Bodanzky, e se prepara para estrear nos palcos paulistanos. 

Engana-se quem pensa que essas boas notícias afastam Iala de seu país de origem. Entre outras coisas, ele sente falta do vento que vem do Atlântico e refresca a capital Bissau, onde passou a infância. 

Nduduzo Godensia, 31
África do Sul

Depois de ouvir elogios de amigos à cidade de São Paulo, o sul-africana Nduduzo Godensia resolveu passar férias na capital paulista, onde passou uma semana, em 2013.

Preparando-se para o retorno ao seu país,  recebeu o pedido de uma amiga, que estava na África do Sul, para levar na mala uma caixa de perfumes. Mas Nduduzo nem pôs os pés no avião. Ao revistar a bagagem dela, policiais de Cumbica descobriram cocaína na caixa. Presa por tráfico de drogas, ela diz ter sido vítima de armação.

Nduduzo passou três anos e seis meses na Penitenciária Feminina do Carandiru, além de dez meses no regime semiaberto. “É uma parte da minha vida que tento não lembrar”, conta. Sua cela ficava a poucos metros do Pavilhão Materno Infantil. “Toda noite eu ouvia o choro dos bebês, o que me deixava ainda mais triste. Não é um lugar para crianças.”

Ex-comissária de bordo de uma companhia aérea sul-africana, ela fala as 11 línguas oficiais de seu país, mas não dominava o português, o que tornou ainda mais difícil sua adaptação à penitenciária. 

Nduduzo começou a participar de um projeto da USP, chamado Voz Própria e coordenado pela cantora e educadora Carmina Juarez. Ao menos durante duas horas por semana, a música a afastava da angústia. 

Depois de deixar a prisão, passou a integrar um grupo chamado Mulheres Livres. O coral foi o primeiro passo para shows e espetáculos de teatro. Também começou a dar aulas de dança zulu, uma manifestação do povo que representa cerca de 22% da população sul-africana. 

Motivada pela arte e pela vontade de orientar pessoas recém-saídas de presídios, Nduduzo estava decidida a permanecer em São Paulo, mas o Ministério da Justiça havia determinado sua expulsão do país.

Nasceu, então, a campanha #NduduzoTemVoz, que ganhou apoio de artistas e movimentos sociais.  A cantora permanece no Brasil graças a uma ação na Justiça Federal movida pela Defensoria Pública. O processo corre em segunda instância.  
 

Na noite de Natal de 2017, Nduduzo e amigos foram a um sofisticado bar de música ao vivo no bairro de Moema. O segurança tentou barrá-los, dizendo que o lugar era caro demais. Depois de insistir, eles entraram na casa e conversaram com o dono, que reforçou o argumento dos preços altos, supondo que nenhum deles poderia pagar. Nduduzo e os amigos, então, desistiram. 

No ano passado, ela voltou ao bar, agora como cantora. Ao fim do show, após os aplausos do público, o proprietário foi até Nduduzo para elogiá-la. Ela aproveitou para lembrá-lo do episódio ocorrido um ano antes. Constrangido, ele se sentou, cruzou os braços e pediu desculpas a ela. 

Prudence Kalambay, 38
República Democrática do Congo

O estilo descontraído de Prudence Kalambay dá lugar por instantes a um tom assertivo. “Saímos dos nossos países por necessidade, tivemos que abandonar nossas famílias. Alguns brasileiros nos veem com pena. Mas nós, refugiados, não somos coitados. Falamos várias línguas e temos uma bagagem intelectual”, diz. 

Aos 38 anos, ela participa de eventos para falar sobre a vida no seu país de origem, a República Democrática do Congo (RDC) —não confunda com a nação vizinha, a República do Congo, também conhecida como Congo-Brazzaville.

Prudence também se apresenta em espetáculos de cultura africana, especialmente nas unidades do Sesc. Costuma dançar o ndombolo, gênero popular na África central. Atua ainda como voluntária na ONG África do Coração, em São Paulo.

Com uma infância confortável em Kinshasa, capital da RDC, ela não poderia imaginar o que estava por vir. Foi criada por uma tia, comerciante bem-sucedida que bancava os estudos da menina. Na juventude, tornou-se assessora de um dos mais poderosos generais do país. Foi nessa época, aos 24 anos, que Prudence recebeu o título de Miss Congo e ganhou projeção graças às TVs do país.

Um ano depois, o conto de fadas começou a ruir. O general, seu patrão, virou persona non grata para Joseph Kabila, que presidiu o país por duas décadas, até janeiro de 2019. Com medo das tropas de Kabila, Prudence fugiu para Angola, com a filha de quatro anos.

O encanto pelo Brasil cresceu na capital angolana, Luanda, onde acompanhava novelas como “Alma Gêmea”. Meses depois, conseguiu comprar uma passagem de avião para o Rio de Janeiro.

A cidade não se parecia em nada com o que ela via na televisão. Assustou-se ao chegar ao bairro de Brás de Pina, onde traficantes exibiam suas armas. Apesar da má impressão, morou por anos no local.

Os diplomas obtidos com a ajuda da organização católica Cáritas levaram Prudence aos seus primeiros empregos, que ficaram marcados pelo racismo. Em um mercado carioca, alguns clientes reclamavam ao gerente da presença de uma caixa “estrangeira”. “Botafogo tem gente que se acha, não é? Mas eu gostava da fila de idosos, as senhoras de idade conversavam comigo.”

Há quatro anos, já com cinco filhos, ela trocou o Rio por São Paulo. Assim que chegou, morou com as crianças em uma ocupação perto da praça da República. Aos poucos, a situação da família tem melhorado. Vivem hoje em uma casa em Artur Alvim, na zona leste.

Embora bem adaptada ao país, Prudence ainda se incomoda com certos modos dos brasileiros. Não se conforma com o desrespeito dos alunos diante dos professores. Seu neto, ela espera, não será assim. Sua filha mais velha, Cathy, 17, está grávida.

João Pedro Canda, 34
Angola

“Juntei as minhas economias e vou me mudar para o Brasil. Quero ser escritor”, disse o angolano João Pedro Canda ao seu pai em 2013.

Além da vontade de se dedicar à literatura, projeto que seria mais viável no Brasil, Canda temia a política repressora de José Eduardo dos Santos, presidente do país de 1979 a 2017. “Havia violação constante dos direitos fundamentais. Era uma democracia só nas aparências”, lembra.

Àquela altura, com apenas 28 anos, Canda já acumulava histórias para contar. No final da gravidez da sua mãe, os médicos em Caluquembe, cidade na região centro-oeste de Angola, disseram à família que era preciso escolher: salvar a vida da mãe ou do bebê. Seu pai recusou as alternativas: “Tem que salvar os dois”. 

O médico suíço Jean Pierre fez o parto e, para a surpresa de todos, mãe e filho sobreviveram. Em homenagem ao médico, o sexto de oito filhos recebeu o nome de João Pedro. 

Logo a família se mudou para a capital, Luanda. Quando Canda chegou à adolescência, seu pai o botou numa van rumo a Malanje, cidade que tinha sido devastada pela disputa entre grupos angolanos rivais. Para o pai, a mudança para Malanje, mais barata que Luanda, permitiria que o filho continuasse os estudos. 

Ao longo do curso de psicologia, Canda precisou contar várias vezes com a generosidade dos colegas para poder se alimentar. Nessa época, também foi ativista de organizações como Cruz Vermelha e Conselho Dinamarquês para Refugiados.

Anos depois, de volta a Luanda, ele decidiu se mudar para o Brasil. Tão logo chegou, morando na casa de um tio no centro de São Paulo, ficou surpreso com traços da cultura brasileira. “Troquei um país conservador por um que é muito permissivo”, diz Canda, de família evangélica. Assustou-se, por exemplo, com a “coisificação das mulheres nas propagandas de cerveja”.

Por outro lado, surgiram boas oportunidades. Uma editora se interessou por seus textos ligados a psicologia e pelos relatos sobre a realidade angolana. O escritor começou ainda a fazer palestras —hoje ele faz pelo menos dez por mês, no Brasil e no exterior.

A curiosidade dos leitores cresceu, o que deu a ele a chance de criar sua própria editora, a TM. Além disso, Canda organiza um encontro com escritores africanos, o Literáfrica, que já teve duas edições concorridas em São Paulo. 

A cidade que lhe deu visibilidade não escapa das críticas. Ele observa na metrópole uma distância entre os negros brasileiros e os que vieram da África. “Os afrodescendentes têm certa dificuldade de se aproximar de nós, africanos. Não costumam participar dos nossos eventos.”

Canda acredita, porém, numa mudança. “Podemos contribuir nas lutas dos afrodescendentes.”

Melanito Biyouha, 45
Camarões

Quando chegou ao Brasil, em 2003, Melanito Biyouha se espantou com a ignorância em relação a tudo o que dizia respeito à África. “Me perguntavam: ‘Dizem que os leões andam nas ruas com vocês, é verdade?’.”

A partir de então, a constatação dessa falta de conhecimento se manteve entre as reflexões da camaronesa, levando-a, cinco anos depois, à inauguração do restaurante Biyou’z, no centro de São Paulo.

Diferentemente de boa parte daqueles que trocam um país africano pelo Brasil, Melanito não estava em busca de emprego, tampouco fugia de conflitos políticos. Terceira de sete filhos de uma família de classe média, trabalhava em um banco em Iaundé, capital de Camarões, quando foi convidada para passar férias em Brasília por um familiar diplomata.

Gostou da cidade e por ali ficou. Começou a trabalhar como cabeleireira no salão de uma conterrânea e, com o sucesso das suas tranças, logo conquistou a própria clientela. 

Numa visita a São Paulo, Melanito se surpreendeu com a ampla variedade gastronômica: casas de comida italiana, francesa, árabe, japonesa, chinesa... Africana? Ela não encontrou nenhuma. 

Semanas depois, fez as malas e se mudou para a capital paulista, disposta a juntar, com os penteados africanos, o dinheiro para montar o seu próprio restaurante. 

O Biyou’z foi inaugurado no final de 2017, a poucas quadras da praça da República. Abrir as portas não significava tocar o negócio em paz. Alguns conterrâneos queriam o restaurante como um reduto de camaroneses, onde o francês e o inglês (línguas oficiais do país) prevalecessem sobre o português. 

A empresária resistiu à pressão, insistindo numa clientela variada. “Quero que se sentem à mesa negros africanos e brasileiros, brancos brasileiros... Precisamos da mistura.”

O cardápio também reflete um cruzamento de referências. O Biyou’z serve pratos camaroneses que Melanito aprendeu com sua avó, como o mbongo tchiobi, bagre com mbongo (tempero africano) e mandioca cozida. Também há, porém, sugestões de outros países do continente, como Nigéria e Senegal.

Embora busque diversidade no restaurante, Melanito não é ingênua a ponto de negar a discriminação. A seu modo, enfrenta as resistências. “Se queremos vencer, não podemos nos sentir como coitadinhos”, enfatiza. “Sou aquela negra que anda com o nariz empinado.” 


Naief Haddad é repórter especial da Folha.

Fotos de Bob Wolfenson, que teve sua produção apresentada na mostra “Retratos”, no Espaço Porto Seguro, em São Paulo. É autor de livros como “Antifachadas/Encadernação Dourada” e “Belvedere”.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que foi publicado na reportagem "Retratos Afro-paulistanos", a amiga da cantora sul-africana Nduduzo Godensia que lhe encomendou uma caixa de perfumes estava na África do Sul, e não no Brasil. Além disso, o governo federal não anulou o decreto de expulsão de Nduduzo do Brasil. A cantora permanece no país graças a uma ação na Justiça Federal movida pela Defensoria Pública. O processo corre em segunda instância. O texto já foi corrigido. 
 

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